Morreu Elie Wiesel, uma consciência que nasceu do genocídio

Sobrevivente do Holocausto e Nobel da Paz, Wiesel foi uma das vozes mais influentes das que levou a humanidade a encarar as suas vítimas, lutando toda a sua vida para mudar o mundo

Morreu no sábado, aos 87 anos, na sua casa em Manhattan, o homem que tinha gravado no braço o número de série A-7713. Recebeu-o aos 15 anos, quando foi enviado com o pai para Auschwitz, na Polónia. No campo de trabalhos de Buna Werke, os dois trabalharam durante oito meses antes de serem transferidos.

Nascido na Roménia, a 30 de Setembro de 1928, Eliezer Wiesel era um adolescente quando a Húngria anexou a sua cidade natal, Sighet, forçando os judeus a deixarem as suas casas e destinando-os aos guetos, em 1940. Em Maio de 1944, os nazis foram autorizados a deportar a comunidade judaica de Sieghet para o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau. A mãe e uma das irmãs morreram nas câmaras de gás. E, na sequência de uma das intermináveis marchas a pé a que os nazis os forçavam, a 29 de Janeiro de 1945 o pai ficou pelo caminho até Buchenwald. Um agente das SS viu-o prostrado devido às dores provocadas pela disenteria e espancou-o até à morte.

Wiesel tinha 16 quando ele e duas irmãs mais velhas foram libertados pelas tropas norte-americanas do campo de concentração alemão de Buchenwald. Com os anos da vida que tinha pela frente, “Elie” viria a tornar-se um dos mais célebres sobreviventes do Holocausto. O carismático professor, autor de mais de 40 livros, dedicou-se à luta pelos direitos humanos e, em 1986, foi laureado com o Nobel da Paz.

Depois de libertado, Wiesel foi para França onde estudou na Sorbonne e aos 19 anos tornou-se jornalista. Durante anos, como aconteceu com tantos sobreviventes, debateu-se com a ideia do suicídio e naquela primeira década não suportava sequer falar sobre o pesadelo que viveu. No mais conhecido dos seus livros, “Noite”, deixou muito claro a noção que acabaria por elevar a uma missão de vida, ao defender que “esquecer os mortos era permitir que fossem mortos uma segunda vez”. Publicado em 1955,  no livro que viria a formar parte de uma trilogia de memórias sobre o Holocausto, – prosseguido em “Amanhecer” e “Dia” – Wiesel revela como a noite em que foi enviado para Auschwitz permaneceu para sempre com ele: “Nunca poderei esquecer aquela noite, a primeira noite no campo, que transformou a minha vida numa longa noite, sete vezes amaldiçoada e sete vezes selada.”

O livro, que antes de ser publicado foi rejeitado por mais de uma dúzia de editores, viria a tornar-se um best-seller perene. Traduzido em 30 línguas, segundo o “The New York Times”, em 2008, mais de 10 milhões de exemplares tinham sido vendidos. Mas, como notava aquele diário, Wiesel teve um impacto não tanto pela sua obra, mas pelo vazio que veio preencher. O jornal de referência norte-americano lembrou que no rescaldo do massacre sistemático de judeus pelos alemães, não tinha ainda emergido uma voz que se desembaraçasse do choque perante os relatos e a imagens do horror infligido a milhões de pessoas, uma voz que fosse além disso e começasse a ponderar o quanto este a enormidade deste acto iria alterar a própria conceção que a humanidade tem de si mesmo e de Deus. Tinham passado quase vinte anos, e fossem os sobreviventes traumatizados ou os judeus espalhados pelo mundo – tantos deles nos EUA, enfrentando crises pessoais ligadas à culpa por sentirem que não tinham feito tudo no seu alcance para resgatar os seus irmãos – pareciam ainda aterrorizados, permanecendo calados.

Mas depois de ter começado a organizar para si mesmo a sua experiências do Holocausto, de ter invocado o momento em que viu o pai ser morto, e a vergonha que sentiu ao ficar quieto enquanto ele era espancado, a personalidade de Wiesel libertou-se e com ela o dom para ir para além do assombro nas suas frases, e foi assim que com cada uma das suas intervenções públicas começou “gradualmente a exumar o Holocausto a partir do cemitérios dos livros de história”.
Quando a Academia Sueca lhe atribuíu o Nobel da Paz, justificou-o por Elie se ter revelado “um mensageiro para a humanidade” e um dos “mais importantes líderes espirituais numa era em que a violência, a repressão e o racismo continuam a caracterizar o mundo”. Vinte anos após sido galardoado disse à revista “Time” que não sentia que os erros do passado tivessem servido de lição ao futuro: “No início, pensei, talvez o meu testemunho seja entendido e as coisas mudem. Mas não. Caso contrário não teríamos tido o Ruanda, o Darfur, o Camboja e a Bósnia. A natureza humana não pode ser mudada numa geração.”

Ao aceitar o Nobel, Wiesel não se sentiu agraciado tanto como sentiu a responsabilidade de continuar com o seu esforço de denúncia. “Eu tentei manter a memória viva, tentei opor-me àqueles que preferem esquecer”, disse no discurso de aceitação, “porque se esquecemos somos culpados, somos cúmplices. (…) Devemos sempre tomar partido. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o torturado. Quando vidas humanas estão em perigo, quando a dignidade humana é posta em causa, as fronteiras e outras sensibilidades nacionais tornam-se irrelevantes. Onde quer que homens e mulheres sejam perseguidos devido à sua raça, religião ou posições políticas, esse lugar tem – nesse momento – de se tornar o centro do universo”.

Wiesel casou-se em 1969 com Marion Rose, outra sobrevivente do Holocausto, em Jerusalém. Com a mulher criou a Fundação Elie Wiesel para a Humanidade, e através desta ajudou refugiados do Camboja e fugitivos do apartheid, entre outras pessoas que precisam de ajuda. A igualdade entre todos era um tema recorrente nos seus discursos. É dele a frase “Nenhum ser humano é ilegal”, que usou para defender os imigrantes ilegais.

Amigo do ex-presidente francês François Mitterrand, escreveu as memórias deste, em 1995, sob o título “Memória a duas vozes”. Além da carreira como escritor, foi professor de Estudos Judaicos entre 1972 e 1976 na City University of New York, ensinou Humanidades e Pensamento Social na Universidade de Yale entre 1982 e 1983 e foi, novamente, professor de Estudos Judaicos na Universidade de Columbia entre 1997 e 1999.

Wiesel recebeu inúmeras distinções ao longo dos anos, incluindo a Medalha Presidencial de Liberdade dos EUA, a Grã-Cruz da Legião de Honra de França e o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico. Recebeu, ainda, mais de cem doutoramentos honorários.

“O meu pai levantou a voz a presidente e primeiros-ministros quando sentiu que os assuntos no palco mundial exigiam acção”, disse o filho, Elisha Wiesel, através de um comunicado. “Mas aqueles que o conheceram na sua vida privada tiveram o prazer de estar ao lado de um homem gentil e dedicado que sempre se bateu para o bem dos outros, e cuja voz tranquilizadora nos comoveu a querermos ser melhores”.