O começo e o fim da guerra fria

No verão de 1945 começou a delinear-se um novo tipo de conflito, com as potências vencedoras da II Guerra a manobrarem para estabelecer áreas de influência. Ajudado pelo colapso do modelo económico soviético, o Ocidente acabaria por triunfar.

No dia 2 de agosto de 1945 terminou a Conferência de Potsdam, convocada para debater as grandes linhas de organização do pós-guerra.

A delimitação das zonas administrativas na Alemanha ocupada, o traçado de fronteiras da Polónia (que implicou, grosso modo, a sua translação para oeste, cedendo à União Soviética uma área correspondente àquela que ganhou ao Reich derrotado), a gestão dos níveis de influência política nos países recém-ocupados pelo Exército Vermelho, tinham focalizado durante duas semanas a atenção política dos três grandes – assim eram designados os líderes dos EUA, do Reino Unido e da União Soviética. Estes abandonaram Berlim num espírito de relativa desconfiança e não voltariam a encontrar-se numa cimeira conjunta. Aos olhos da opinião pública anglo-americana, Josef Estaline estava em vias de abandonar rapidamente a sua persona heroica e algo simpática de Uncle Joe para retomar a do tirano que controlava superiormente toda e qualquer vibração na teia vermelha que o Kremlin progressivamente urdia sobre o planeta. 

O líder soviético, que fora avisado (25.7.1945) pelo Presidente Truman da explosão atómica experimental em Alamogordo (16.7.1945) e que teria oportunidade nos dias imediatos de verificar a terrível eficácia da arma nuclear sobre Hiroxima e Nagasaki (6 e 9 de agosto de 1945), regressou ao seu país determinado a dar prioridade máxima ao projeto nuclear russo, já então em curso e significativamente denominado ‘Tarefa Número Um’; assinale-se que a sua impassibilidade face à comunicação de Truman não implicava desconhecimento, pois os seus serviços de espionagem tinham-no mantido informado sobre o avançar do Projecto Manhattan no continente norte-americano. Indicativo também da prioridade do esforço soviético era o facto de a direção daquele ter sido entregue a Lavrenti Beria, o temido chefe da NKVD, jocosamente apelidado pelo próprio Estaline de «o meu Himmler». A Guerra Fria, esse longo duelo de mais de quatro décadas, estava já em pleno desenvolvimento. As peripécias foram inúmeras e extravasaram do teatro europeu, no entanto, merece ser realçado que alguns dos traços fundamentais da contenda estavam delineados desde o verão de 1945: a preocupação e a dificuldade em gerir o recorrente dinamismo germânico no centro da Europa, a rivalidade geoestratégica sobre o espaço que se estende entre a Alemanha e a Rússia e o compreensível temor sagrado infundido pela arma nuclear. 

Se outro dos traços fundamentais da Guerra Fria – o duelo ideológico entre o modelo económico liberal do Ocidente e o das economias planificadas do Leste – foi decidido de forma clara e inapelável no final da década de 1980 com o ruir calamitoso do modelo socialista, já o problema alemão e a rivalidade geoestratégica sobre o Leste da Europa, bem como a sombra da ameaça nuclear, continuam hoje a marcar o devir da Europa. Merece ser relevada a influência – e atualidade, também – de dois textos de George Kennan: o Long Telegram (enviado em fevereiro de 1946 de Moscovo, onde Kennan era chargé d’affaires) e o artigo ‘The Sources of Soviet Conduct’ (publicado em julho de 1947 na Foreign Affairs). Eles deram substância intelectual e enformaram a política de containment (a contenção do que era então percecionado como expansionismo soviético) adotada pelo Presidente Truman, se bem que muitos dos pontos mais finos da argumentação de Kennan se tenham perdido nas simplificações que acompanham invariavelmente qualquer guerra ideológica. O Plano Marshall (anunciado em junho de 1947 e implementado nos anos imediatos) e a criação da NATO (abril de 1949) marcariam, respetivamente na esfera económica e militar, a política de Truman. Por seu lado, Estaline estava decidido a estabelecer nos países da Europa Oriental e Central, onde o Exército Vermelho se havia aquartelado, regimes da sua confiança política e que constituiriam um cordão sanitário de proteção ao território soviético. Esse cordão existiria durante mais de quatro décadas até que a passagem do tempo tornou insustentável o rígido controlo sobre esses satélites: Berlim, Praga, Budapeste ou Varsóvia, essas grandes cidades históricas europeias, não aceitariam viver indefinidamente dentro das baias do sistema marxista-leninista, em tal grau se revelou deficiente a vida económica que lhe vinha associada. 

Falta de racionalidade do sistema económico Os regimes soviéticos foram construídos sobre a utopia de que o ser humano consegue dar o seu melhor em estado de permanente abnegação, prescindindo do seu imediato bem-estar. Ora, não é assim: por ser naturalmente egoísta o homem só é levado a aceitar voluntariamente tais exigências em períodos de extrema necessidade. Manter um grande país em estado de preparação bélica permanente pode justificar-se sob a sensação de perigo iminente e com a meta da vitória à vista. Assim, durante a Grande Guerra Patriótica de 1941-45 a União Soviética foi o empolgante exemplo de uma nação em armas. A vitória total alcançada em maio de 1945 não pôde ocultar o grau de destruição material do território soviético nem a enorme perda de vidas humanas. O esforço de reconstrução ocupou o país durante mais de uma década. No entanto, os dividendos da paz foram-se esfumando como uma miragem e se as bombásticas promessas propaladas por Kruschev de ultrapassar o nível económico dos países capitalistas do Ocidente suscitavam um ceticismo divertido por volta de 1960, jamais a liderança soviética das décadas seguintes teria a veleidade de as repetir, de tal forma soariam bizarras. O desperdício, a sensação de produzir para cumprir metas administrativas desligadas das necessidades mais prementes da população, tornaram cada vez mais evidente a falta de racionalidade do sistema económico. Com a passagem dos anos e de forma insidiosa, um profundo cansaço moral foi-se apoderando de muitos dos cidadãos, que tenderam a alienar-se da causa pública, ensimesmando-se ou procurando conforto espiritual no círculo mais restrito da família próxima e dos amigos. Assim, as décadas de paz corroeriam lentamente o sistema comunista, conduzindo-o ao descrédito total. Em março de 1985, a escolha de Mikhail Gorbachev, o mais jovem elemento do Politburo, com os seus de cinquenta e quatro anos de idade recém-cumpridos, para gensek (secretário-geral do Partido Comunista) indicou que o sistema, consciente do marasmo gerontocrático em que havia caído, se tinha disposto a arriscar a mudança controlada. No entanto, nem o mais arrojado analista se atreveria então a vaticinar que, poucos anos mais tarde, o regime comunista implodiria, arrastando consigo a superstrutura da União Soviética. Ainda mais inacreditável pareceria a hipótese de que tal implosão seria provocada pela república russa, supostamente a arquitrave de todo o sistema. 

A secessão ucraniana Com efeito, se a perda dos satélites soviéticos era inevitável, o refluxo poderá ter ido longe de mais no turbilhão político de 1990-91, quando uma linha pouco percetível nos mapas atuais, mas que essencialmente delimita a oriente os territórios anexados por Estaline em 1939-1940 – a linha Curzon de 1919 – foi ultrapassada em grande extensão. O «estrangeiro próximo» não deve ser confundido nas suas várias regiões: a Ucrânia a leste do Dnieper, rio que banha Kiev, tem uma importância estratégica para Moscovo muito superior à dos Países Bálticos. O facto de Estaline ser de origem georgiana nunca é esquecido, mas quem se lembra verdadeiramente da origem ucraniana de Kruschev e de Brejnev? Foram esses dois líderes, que ocuparam em sucessão o poder supremo em Moscovo durante quase três décadas (1953-1982), alguma vez apontados como metecos? 

A secessão ucraniana em 1991 foi um acontecimento do maior alcance, quando laços políticos com mais de três séculos foram cortados, não por imposição de qualquer colapso militar, tal como em 1918, nem tampouco pela força bruta da conquista estrangeira, tal como no período de 1941-43, na sequência de Barbarossa. Para mais, e de forma distinta do que ocorria em simultâneo no espaço jugoslavo, as tensões étnicas pareciam inexistentes no caso ucraniano. 

Como explicar que as regiões profundamente russificadas do leste e do sul da Ucrânia tenham apoiado a independência no referendo de 1 de dezembro de 1991 em números surpreendentemente elevados? Com efeito, o sim à independência registou consistentemente percentagens superiores a oitenta por cento em cidades como Kharkov, Donetsk e Odessa. Totalmente indiferentes à magnitude das implicações geopolíticas do seu acto, as populações ucranianas procuraram uma saída de urgência para as suas dificuldades imediatas. Face à falência do sistema centralizado, a independência pareceu uma solução lógica, pois, afinal, a Ucrânia fora no passado um dos celeiros da Europa e possuía uma infraestrutura industrial invejável, que fazia da bacia do rio Donets (Donbas) a segunda mais importante região industrial da União Soviética.

 A reconversão algo oportunista de antigos políticos comunistas foi rápida e estes tomaram em mãos em Kiev a condução de um movimento independentista que caberia mais naturalmente às forças da oposição nacionalista, com raízes historicamente mais profundas na Ucrânia Ocidental, nomeadamente na região de Lvov. 

Cristalizou na opinião pública ocidental o consenso da inevitabilidade do colapso do império soviético, esse gigante ideológico que tinha afinal pés de barro. Além disso, tal processo é considerado essencialmente benéfico. No entanto, não será inútil reconhecer que pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial e do início da era nuclear uma grande potência tem um elevado número de cidadãos fora de fronteiras em zonas contíguas ao seu território. 

A vertigem do golpe Tendo em conta que não se verificavam mudanças geoestratégicas desta magnitude desde 1945 e que elas diziam respeito a uma das duas superpotências mundiais, qual a posição assumida pela outra, os Estados Unidos da América? Observação atenta e ansiosa e espanto, também. O presidente americano George H. Bush tinha larga experiência em assuntos de segurança e não se pode assacar-lhe que tenha tentado explorar de forma agressiva ou impaciente o vendaval na casa do adversário geopolítico. Uma excelente prova de que o cataclismo da implosão soviética era previamente impensável e de que levantava problemas imprevisíveis é dada pelo teor do discurso proferido por Bush em Kiev, no primeiro dia de agosto de 1991. Este discurso alertava os políticos ucranianos contra os excessos independentistas e foi ridicularizado na imprensa americana como o Chicken Kiev speech (jogo de palavras sobre a pretensa falta de coragem do orador).

Em 2005, Condoleezza Rice, já liberta da responsabilidade da Secretaria de Estado, ela que tinha afinal sido a redatora do discurso, justificava que o naquele momento parecia evidente não o houvera sido em 1991, quado a cautela era de rigor, face ao colapso de um Estado Soviético carregado de armas nucleares.  Menos de três semanas mais tarde, o golpe conservador (19-21.8.1991) acelerou o ímpeto de mudança em vez de o travar. Entretanto, já regressado aos EUA, Bush assistia inquieto ao evoluir do golpe, chegando a sugerir, de forma não pública e quase em sussurro, que brigadas especiais americanas poderiam disponibilizar-se para desativar in situ e num curto espaço de tempo as ogivas nucleares do arsenal soviético. Obviamente, tal sugestão foi recusada pelas forças armadas soviéticas. No entanto, ela deixa entrever uma componente menos evidente e que dá vertigem em todo este processo: a eventualidade de uma superpotência nuclear poder ser palco de uma convulsão política e constitucional de tal magnitude não havia sido prevista. Mas são estas mesmas armas, acumuladas durante décadas de suspeição mútua até níveis chocantes e incompreensíveis para os leigos nos aspetos mais intrincados da estratégia nuclear, que impuseram, e devem impor ainda hoje, a maior cautela política nas relações entre os Estados Unidos e a Rússia.

No ano de 1994, pouco antes de morrer, Richard Nixon – um Presidente que, pese embora a sua desgraça política em Washington, fora hábil e seguro na condução da política externa -, interrogado sobre qual o eixo mais importante nas relações externas norte-americanas, apontou sem hesitação para a Rússia. Estando então esta no seu nadir, a resposta suscitou o espanto dos jornalistas. Nixon reafirmou então o seu juízo, justificando-o com o facto de ser a Rússia o único país que tinha a possibilidade física de devastar os Estados Unidos no intervalo de poucos minutos. Mais de duas décadas passadas, o juízo de Nixon mantém toda a sua validade.