10 momentos que marcaram a vida do novo secretário-geral da ONU

António Guterres entrou para o PS no dia 25 de abril de 1974 e começou uma caminhada que o levou a um dos cargos mais relevantes do mundo. Pelo caminho recusou a presidência da Comissão Europeia e demitiu-se do governo para evitar o pântano. Antes disso tudo destacou-se por acabar o curso no Instituto Superior…

O aluno brilhante António Guterres só entrou na política depois do 25 de Abril, mas antes da revolução envolveu-se em movimentos ligados à Igreja que faziam trabalho social em bairros de lata de Lisboa. “Não tive uma atividade política significativa antes do 25 de Abril. O meu envolvimento foi em questões de natureza social. Fui lentamente, com isso, despertando para opções políticas”, diz numa entrevista a Anabela Mota Ribeiro. Terminou o liceu com 18 valores e licenciou-se em Engenharia Eletrotécnica no Instituto Superior Técnico com 19 valores. Pertenceu ao “Grupo da Luz”, do qual fazia também parte o atual Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Nasceu em Lisboa, mas cresceu em Donas, Castelo Branco. Da infância, garante, guarda na memória as “injustiças” que existiam no mundo rural dos anos 50.

A entrada para o PS Filiou-se no PS no dia 25 de abril de 1974. Entrou pela mão de António Reis e numa entrevista, em 2002, conta que “houve um acentuar progressivo de um conjunto de preocupações. E no período que antecedeu e que sucedeu ao 25 de Abril houve um forte apelo da vida política em si. As coisas conjugaram- -se, e encontrei na política a resposta a essa ansiedade”. Nessa mesma entrevista, o ex–líder do PS define-se como um social-democrata e confessa que Salgado Zenha foi a figura política que mais o marcou. “Em termos políticos, pode dizer-se que teve para comigo um papel muito paternal, é indiscutível.” Foi eleito deputado em 1976. 

O duelo com Sampaio Foi provavelmente a luta mais dura entre socialistas. De um lado estava Jorge Sampaio e do outro António Guterres. “A campanha entre Sampaio e Guterres foi de grande agressividade e levou tempo a curar as feridas”, recordou, uns anos mais tarde ao “Público”, o socialista Alberto Martins. Em 1991, o país vivia a euforia do cavaquismo e o PSD voltou a conquistar a maioria absoluta. O PS, liderado por Sampaio, não conseguiu chegar aos 30%. “Estes resultados deixam-me em estado de choque”, disse Guterres na noite eleitoral. Há muito tempo que os apoiantes de Guterres, entre os quais estava Jorge Coelho, andavam a angariar apoios por todo o país – o que lhes valeu a acusação de traição. Ganhou António Guterres, e o PS, na linha da terceira via de Blair, passou a posicionar-se menos à esquerda e mais ao centro. 

A gafe. “É fazer a conta” O cronista Vasco Pulido Valente batizou António Guterres como o “picareta falante”. O então líder do PS falava sobre tudo com uma facilidade desarmante. Mas naquele dia, o candidato a primeiro-ministro embrulhou- -se nas palavras. A pergunta era sobre a promessa de Guterres gastar 6% do PIB na saúde. “Isso é quanto em dinheiro?”, questionou o jornalista da SIC Ricardo Costa. A resposta foi um desastre: “São… o produto interno bruto são cerca de três mil milhões de contos. Portanto… 6%… 6% de três mil milhões. Seis vezes três 18. Um milhão e… um milhão e… ou melhor. Portanto, enfim, é fazer a conta.” Os socialistas conseguiram convencer alguns jornalistas a ignorar o episódio, mas a SIC transmitiu a “gafe” no “Jornal da Noite”. O incidente foi depois transformado pelos socialistas num trunfo. Guterres é humano e também se engana. 

Seis anos no governo António Guterres rompeu com o cavaquismo – que levou a que o PS ficasse afastado do poder durante dez anos – e trouxe para a política a garantia de que é preciso governar com a razão, mas também com o coração. Ideologicamente, aderiu à terceira via e arrumou na gaveta algumas ideias de esquerda que até essa data vigoravam no PS. Ao contrário de Cavaco, Guterres fazia do diálogo uma bandeira, o que lhe valeu ficar colado à imagem do político que tem dificuldade em decidir. Eram os tempos da paixão pela educação ou da criação do rendimento mínimo garantido. Guterres venceu as eleições em 1995 contra Fernando Nogueira, com 43% e 112 deputados, e voltou a vencê-las em 1999 contra Durão Barroso e 115 deputados. Ficou a um deputado da maioria absoluta e demitiu-se a meio do segundo mandato para evitar o “pântano”. 

A recusa que mais lhe custou Antes de Durão Barroso ter chegado a presidente da Comissão Europeia, outro português teve essa oportunidade. Chama-se António Guterres e, ao contrário do social-democrata, optou, em 1999, por não trocar Portugal por Bruxelas. Não foi fácil a decisão. “Se tivesse uma lógica de ambição pessoal, deveria ter aceite naquele minuto. Entendi que o que estava a fazer aqui me criava obrigações de que não podia fugir”, disse o futuro secretário–geral das Nações Unidas. A recusa valeu-lhe elogios por não abandonar o país, mas Guterres confessou que “se alguma coisa” lhe “custou recusar, foi a Comissão Europeia. Custou-me muito dizer que não”. Foi a primeira vez que recusou um cargo desta dimensão, mas também deu uma nega a Mário Soares quando este o convidou para ministro da Saúde, poucos anos depois de entrar na política. E a Constâncio e Sampaio, quando o desafiaram a candidatar-se à câmara de Lisboa. 

A demissão e o pântano Na noite de 17 de dezembro de 2001 não faltaram socialistas a tentar demover António Guterres de apresentar a demissão. Guterres não cedeu. A pesada derrota nas autárquicas e o facto de não ter maioria absoluta foram fatores decisivos para que anunciasse ao país a demissão. Depois de confirmar que, para além da câmara do Porto, o PS também tinha perdido para o PSD a autarquia de Lisboa, Guterres comunicou ao país     que se demitia para evitar que o país caísse “num pântano político”. O governo socialista dava sinais de desnorte há algum tempo e a ausência de maioria absoluta conduziu Guterres a situações caricatas como a negociação do chamado “orçamento limiano”. Mais tarde, na biografia do jornalista Adelino Cunha, Guterres confessou que foi um erro. “Cometi um erro político ao permitir a aprovação do chamado orçamento limiano, devia ter dito que um chumbo na Assembleia da República levaria à minha demissão. Se isso acontecesse, candidatava-me novamente a primeiro-ministro”.

Belém ficou pelo caminho António Guterres era o mais desejado pelo PS para se candidatar a Belém, mas, embora tenha deixado a porta aberta durante uns tempos, nunca esteve muito virado para voltar à política nacional. Os socialistas sabiam que ou era ele ou a probabilidade de um candidato de direita voltar a conquistar a presidência da República era enorme. Assim que chegou à liderança, António Costa deixou claro que Guterres seria o “melhor candidato”, mas o ex-primeiro-ministro acabou com o tabu em abril de 2015. “Sempre me interessei pelo serviço público e pretendo continuar a fazê-lo, mas o que gosto mais de fazer é o tipo de função que tenho atualmente, que permite ter uma ação permanente e direta sobre o que se passa no terreno”, explicou Guterres, numa entrevista à Euronews em Bruxelas. Uns dias depois, após uma visita a Sócrates na cadeia de Évora, o socialista confirmou que essa hipótese estava totalmente afastada. 

Alto comissário da ONU Guterres demitiu-se em Dezembro de 2001 do cargo de primeiro-ministro e afastou-se da vida política nacional. Quatro anos depois, o ex-primeiro-ministro assumiu funções como alto comissário das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR). Ocupou o cargo durante dez anos. “Nunca imaginei que as pessoas pudessem suportar níveis de sofrimento tão avassaladores”, disse, numa entrevista à RTP, num relato sobre a sua experiência na ACNUR. Os dez anos neste cargo permitiram-lhe, além de percorrer o mundo, conhecer por dentro as Nações Unidas. Uma das mudanças que fez foi reduzir em 20% o pessoal na sede, em Genebra. E triplicou a quantidade de atividades na organização com o objetivo de dar resposta ao aumento do número de refugiados. 

A batalha mais difícil Ao início poucos acreditavam que fosse possível António Guterres ser eleito secretário- -geral das Nações Unidas. Contra ele estavam as condições informais para ser eleito para este cargo: ser uma mulher e proveniente da Europa de Leste por uma questão de rotatividade geográfica. Guterres conseguiu, porém, vencer cinco votações informais – antes de vencer a sexta e última que lhe valeu a nomeação – para além de ter tido boas prestações em audições públicas e privadas bem como no debate com os outros candidatos à liderança das Nações Unidas. O aparecimento de última hora da búlgara e vice-presidente da Comissão Europeia, Kristalina Georgieva, fez tremer a candidatura de Guterres, mas a experiência do português e um processo de seleção transparente e aberto acabou por ajudar à sua chegada a um dos cargos mais importantes do mundo.