Os traumas, as frustrações e os sonhos de uma lenda do rock

Em casa ninguém lhe impunha limites. Na escola levou reguadas, carolos e foi vítima de bullying. Refugiou-se na guitarra, treinando «até os dedos implorarem piedade». Na autobiografia Born to Run, Bruce Springsteen conta a história empolgante de uma das mais longas e bem-sucedidas carreiras do rock.

Sigmund Freud, o pai da psicanálise, escreveu que a morte do pai era o acontecimento mais importante na vida de um homem. Na sua autobiografia, Bruce Springsteen recorda o momento em que viu o progenitor deitado no leito de morte, em abril de 1998: «Os pés são vermelhos e amarelos, marcados pela psoríase. Esculpidos em pedra, não percorrerão mais quilómetros. São os pés do meu inimigo, e também do meu herói. Agora, desmoronam a partir da base. Examino-o mais acima e entrevejo-lhe os bóxeres desalinhados, e, depois, duas fendas intumescidas, que contêm no seu interior uns olhos castanhos, avermelhados. Assim permaneço por muito tempo; inclino-me em frente e levanto uma mão pesada e escamosa entre as minhas. Sinto uma respiração quente quando os meus lábios beijam uma face áspera e sussurro o meu adeus».

Assim terminava uma relação que nunca fora pacífica, bem pelo contrário. De ascendência irlandesa, Douglas Frederick Springsteen sofria de alcoolismo e de perturbações mentais, canalizando a agressividade ora para a mulher, ora para o filho. Bruce, que um dia chegou a bater-lhe com um bastão de basebol, refere «a hostilidade e a raiva crua» que o pai lhe dedicava. «Ele adorava-me, mas não me suportava. Sentia que disputávamos o afeto da minha mãe. E era verdade».

Em Born to Run (ed. Elsinore), Bruce Springsteen revisita a sua vida desde o início, num exercício quase de psicanálise, sem deixar de fora os aspetos incómodos. «Este livro demorou sete anos a ser escrito», revela nos ‘Agradecimentos’. «Apontava as minhas ideias no meu caderno e guardava-o durante algum tempo, por vezes, durante um ano ou mais, enquanto gravava e andava em digressão. Não tinha pressa ou qualquer prazo. Isso permitia-me regressar ao livro com um novo olhar e avaliar o que tinha sido escrito». Um dos artistas mais populares do nosso tempo, Springsteen bateu um recorde com esta obra: nunca uma editora havia oferecido dez milhões de dólares de adiantamento por um livro de memórias de um músico.

Uma liberdade terrível
Nascido em Nova Jérsia em 1949 (completou 67 anos no dia 23 de setembro), durante a infância Springsteen viveu com os pais, a irmã e os avós paternos num grande casarão decrépito. «Ninguém me impunha limites. Era uma liberdade terrível para um miúdo e eu aproveitei-a completamente. Com cinco ou seis anos, ficava acordado até às três da manhã e dormia até às três da tarde. Via televisão até ao fim da emissão e, depois, ficava sozinho a ver a mira técnica, de olhos esbugalhados. Comia o que queria às horas que queria».

Estudou numa escola de freiras, onde recebeu a sua dose de castigos. «Ao longo da primária, já me tinham batido com a régua nos nós dos dedos ou puxado a gravata até sufocar; já me tinham dado carolos e enfiado de castigo num armário ou na lata do lixo enquanto diziam que aquele era o meu lugar. Tudo bastante normal para uma escola católica nos anos 50».

Mais tarde veio a descobrir que, apesar desse trauma, nunca deixara de ser católico. «Quando se é católico, é-se católico para toda a vida». Hoje, confidencia, continua a ter «uma relação ‘pessoal’ com Jesus».

Além dos castigos aplicados pelas freiras, na escola também foi vítima de bullying. «Os meus colegas da escola eram, em geral, pessoas de bom coração. Mas havia alguns que eram malcriados, agressivos e antipáticos. Foi aí que fui vítima do bullying que todos os aspirantes a estrelas de rock têm de aguentar num silêncio raivoso, cruel e humilhante, a terrível solidão de estar encostado ao muro da escola, enquanto o mundo gira à nossa volta, para lá de nós e a rejeitar-nos ostensivamente, combustível para o fogo que há de vir».

Começou por tentar refugiar-se das frustrações numa guitarra alugada, quando tinha apenas sete anos. Não resultou. Mais tarde, já na adolescência, comprou uma guitarra castanha com o dinheiro ganho a fazer biscates na vizinhança. «Levei-a para o quarto e fechei a porta, como se fosse um objeto sexual (e até era!). Sentei-me e pousei-a no colo […]. As cordas eram grossas como fios telefónicos e, por isso, limitei-me a fazer barulho, tocando de ouvido. […] Doía à brava. A pele rosada e suave das pontas dos meus dedos não estava preparada para os cabos esticados sob aquela caixa de madeira a fingir que era um instrumento. […] Nas duas semanas seguintes, até os meus dedos implorarem piedade, treinei todo um repertório de não-melodias numa guitarra não afinada».

O maior sonho do rock’n’roll
Em paralelo com a história da sua vida, Springsteen vai contando episódios da história contemporânea, numa perspetiva sempre pessoal: relata os estratagemas que os rapazes arranjavam para escapar à Guerra do Vietname, como não tomarem banho durante dias e fingirem-se de loucos, ou recorda onde se encontrava quando o homem chegou à Lua. «Por coincidência, a banda estava marcada para começar a atuar exatamente à mesma hora que o primeiro homem estava a aterrar na Lua, 22h56. Metade do público, de trinta e tal anos, queria que começássemos a tocar e a outra metade queria que observássemos solenemente aquele momento marcante da história da humanidade. Começávamos a tocar e alguns mandavam-nos calar; parávamos, e outros queixavam-se de que a banda não estava a tocar». De forma não muito surpreendente, a noite acabou com a banda a ser expulsa do bar.

Born to Run está cheio de ‘primeiras vezes’: a primeira guitarra, o primeiro concerto, a primeira bebedeira (só aos 22 anos), o primeiro contrato, a primeira vez que Springsteen ouviu uma música sua a passar na rádio. «Estava eu parado numa esquina antes de um espetáculo numa escola em Connecticut quando um carro parou nos semáforos e ouvi ‘A Spirit in the Night’ a tocar o rádio: o meu maior sonho de rock’n’roll tornado realidade! A primeira vez que se ouve uma canção nossa na rádio é inesquecível. De súbito, eu fazia parte da misteriosa procissão da música popular que me enfeitiçara desde que, de olhos sonolentos, fora embalado ao som fumarento dos botões do autorrádio do meu avô».

O estrelato chegou em 1975, justamente com o álbum Born to Run. Na mesma semana, Bruce Springsteen foi capa de duas revistas – nada menos do que a Time e a Newsweek – e o que ganhou com as vendas permitiu-lhe comprar «um delicioso piano de cauda Steinway e um Chevrolet Corvette de 1960, com rodas Cragar». Esse mesmo que aparece, reluzente, na capa do livro.