Luaty Beirão. “Tenho sempre medo, mas o medo até pode ser um bom combustível”

O músico e ativista angolano está em Portugal para apresentar o livro “Sou eu mais livre, então” e para dar um concerto no Musicbox, a 3 de dezembro

Com o tempo cronometrado para uma conversa que podia ter o dobro, o triplo da duração, mas que a cadeia de entrevistas impede que assim seja, à nossa frente não está um miúdo irreverente sem causas, um kamikaze – como se intitula numa das suas músicas e num encontro, em 2011, que levou ao seu primeiro grande confronto público com o regime de José Eduardo dos Santos. A nossa frente está antes um homem de 35 anos que estudou Engenharia Eletrotécnica em Plymouth, e Economia em Montpellier. Um homem frontal, mas ponderado – que antes de chegar a Lisboa esteve no edifício das Nações Unidas em Genebra, Suíça, para participar numa conferência sobre detenções arbitrárias. “Vim falar enquanto vítima de detenção arbitrária”, disse, fazendo referência a junho de 2015, quando foi detido, juntamente como outros ativistas, durante uma sessão de leitura do livro de Gene Sharp, “Da Ditadura à Democracia”. É nessa condição que Luaty Beirão veio a Portugal apresentar o livro “Sou Eu Mais Livre, Então – Diário de um Preso Político” (ed. Tinta da China), obra em que relata as suas experiências durante parte do cerca de um ano que esteve preso no Estabelecimento Prisional de Calomboloca, tendo depois iniciado uma greve de fome que durou 36 dias e o deixou frente a frente com a morte. Mas Luaty Beirão não quer ser visto como um mártir e por isso vem a Lisboa também como Ikonoklasta, o rapper que tem algo a dizer. Um espetáculo, em conjunto com o também rapper MCK, que sobe ao palco do Musicbox a 3 de dezembro, e que antes foi proibido em Luanda.

Quanto do kamikaze – título de uma das suas músicas e um dos hinos do movimento revolucionário em Angola – está agora de visita a Portugal?

Cada vez mais há mais desse kamikaze. Infelizmente o contexto não mudou, e quanto mais a gente se expõe, mais estamos sujeitos a riscos. Agora que a tensão está ao rubro, eles estão claramente desesperados porque está a chegar ao fim uma era. Está claro para toda a gente que está a chegar o fim de uma era, até porque a biologia cobra. Sente-se um nervosismo muito grande e quando as pessoas estão nervosas, com receio de perderem aquilo que conquistaram, começam a fazer coisas estúpidas. Portanto, é muito do kamikaze que está cá.

Até porque a expectativa em relação a si obriga a que assim seja, pois tornou-se símbolo de uma geração?

Sim, há muita expectativa em torno disso. Tento gerir cada dia da minha vida, não deixando que a expectativa das pessoas determine das minhas decisões. O que tenho de fazer é aquilo que sinto que devo fazer e não aquilo que as pessoas esperam que faça. Se não for assim entro numa espiral e perco a minha identidade. Há uma quantidade enorme de pessoas que insiste que forme um partido político e me candidate à presidência.

E por que não lhe agrada essa ideia?

Para mim isso está completamente fora de questão. É preciso criar freios às expectativas que as pessoas criam sobre nós. Sei que há expectativas em relação a mim e para já sinto que não tenho razão para deixar de fazer o que faço, para mudar. Independentemente dos riscos. Aliás, neste momento sinto-me até mais encorajado para continuar. Se calhar analiso um pouco mais.

Analisa um pouco mais porque receia passar a ser visto como alguém inconsequente, que ainda que com uma causa, está permanentemente a criticar?

Isso acaba por acontecer. Só o facto de estar em Portugal e dar tantas entrevistas… Isto chega lá e certas pessoas vão dizer que também já é demais e vão questionar se não tenho nada para elogiar, se só há aspetos para criticar.

E não há nada para elogiar? O que é positivo na Angola de hoje?

Continuam a ser as mesmas cosias que são evocadas quando se fala com saudades do país: o calor humano, a generosidade das pessoas comuns, a hospitalidade. E depois há qualquer coisa – eu não sou crente – de místico que nos faz continuar estranhamente apaixonados por Angola. É como aquele casal em que uma pessoa é violenta e ainda assim não se conseguem separar.

É isso que o tem sempre feito regressar? Mesmo agora, que está em Lisboa após ter estado preso? Continua a querer regressar?

Claro que sim! É lá que sinto que posso fazer alguma coisa de realmente útil. Não que não pudesse fazer algo daqui mas lá a nossa pequena ação tem mais impacto porque há tudo por fazer. E não é só isto. Eu nasci e cresci em Angola. Tenho essa coisa mística que não sei explicar, mas o meu coração está em Angola, o meu umbigo está lá. É em Angola que quero viver. Mas não tenho isto como uma obstinação. Se um dia achar que esgotei tudo o que tinha para dar e todo o amor que me prende a Angola, saberei reconhecê-lo e aceitá-lo, ainda que com alguma tristeza porque gostaria mesmo de ver o país mudar, gostaria de ver que as pessoas podem sorrir com mais alguma razão que não apenas sorrir para não chorar. Aquele povo sofrido merece um país um bocadinho mais equilibrado e justo.

Mas os indicadores mais recentes apontam no sentido contrário, de um agravamento das disparidades.

Está a chegar a um ponto insustentável e quando se chegar aí, chega-se ao ponto de imprevisibilidade. Uma imprevisibilidade algo previsível porque a gente já viu isto noutros locais do mundo. Os seres humanos chegam uma altura em que, dentro da sua humanidade, têm de reagir. Por uma questão de sobrevivência. Infelizmente, a falta de visão e de lucidez dessas pessoas que querem agarrar-se a tudo e não prescindir de nada, nem num momento de crise, está a fazer Angola chegar a um ponto insustentável. A gota que vai fazer transbordar o copo está a chegar.

Mas acha que a saída de cena de José Eduardo dos Santos porá, por si só, fim aos problemas do país, ou na verdade ele é apenas uma peça – ainda que muito importante – da engrenagem?

Claro que não será o fim dos problemas. As coisas não se vão remediar automaticamente com a sua saída. Ele criou uma máquina, um sistema e é preciso que isso seja desmantelado. E que sobrem as peças que realmente podem ser úteis numa nova máquina. Porque tem pessoas lá dentro com ideias, com coração, com vontade. Mas aquilo está construído de tal maneira que as pessoas mais intencionadas acabam por ser sorvidas. Por isso é preciso desmontar a máquina que existe. Mas é preciso que os angolanos tenham consciência de que a saída de José Eduardo dos Santos não é o golpe de varinha mágica para Angola se tornar num país melhor e próspero. É preciso empenharmo-nos na construção de uma sociedade mais aberta e onde os dirigentes se sintam forçados a ouvir mais e agir de acordo com as expectativas de quem os mandata para lá estarem. Isto é um trabalho de mudança de mentalidades que vai levar muito tempo.

Já se assistiu a isto em vários países: quando sai de cena uma figura tão pesada como é o caso de José Eduardo dos Santos, muitas vezes isso leva a guerras civis.

Esse risco é real em qualquer sistema onde uma pessoa tenha estado 37 anos a governar e a construir uma teia na qual se enredou. Porque criou muitos monstros e alguns desses monstros têm poder de fogo. Tenho este cenário como possível.

Como evitá-lo, então?

Acho que a saída de cena dele por vontade própria pode ser um tampão ou pelo menos reduzir o risco. Tenho muito mais receio que ele morra no poder ou que seja retirado à força por um golpe de estado. Esses cenários são mais assustadores. E mesmo o facto de ele sair pelo próprio pé não invalida os outros dois cenários. Mas acho que pode mitigá-los um bocado. E é a única maneira sã de dar o passo seguinte.

Nunca falou com José Eduardo dos Santos. O que teria para lhe dizer?

Sinceramente acho que ia tentar procurar formas de o reconfortar, formas de lhe dizer que independentemente de concordar, ou não, com o que ele fez, acredito que a dada altura do seu percurso ele realmente se esforçou para fazer aquilo que achava que era melhor. Todos somos humanos, todos falhamos, não há ninguém perfeito. Só que ele falhou em insistir no erro. E dizia-lhe que a única coisa que a única coisa que lhe resta fazer para sair com dignidade é saber reconhecer onde estão esses erros, é saber ouvir as pessoas que pensam diferente dele, e não se rodear mais das pessoas que só dizem que ele é a única pessoa capaz do país. E antes de dar o passo de passar o testemunho, abrir o que está fechado, como a imprensa. Mas tem de ser ele a dar o sinal. Se calhar é por isso que ele não nos quer receber. Tem um orgulho grande e se calhar acha que receber jovens imberbes seria rebaixar-se.

Mas gostava de se reunir com ele?

Se ele me desse essa oportunidade de lhe dizer diretamente aquilo que penso e falarmos de igual para igual – com o respeito que se deve a alguém que é mais velho, claro – queria ter a oportunidade de falar com ele para ele perceber que não tenho nada de antagonismo pessoal em relação a ele. É a figura de presidente que ele criou e a forma como ele decidiu governar e criar essas armadilhas dentro do país de que discordo. Mas desejo-lhe vida. Ele está doente e gostava que pudesse desfrutar dos anos que lhe sobram de uma maneira livre de tudo isto. Mas acho que ele tem receio do que pode acontecer quando ele sair.

Receio do que pode acontecer ao país ou a ele próprio?

Acho que tem receio que as pessoas o possam perseguir. Ele é assombrado pelas coisas que fez. Por isso gostava de o reconfortar e dizer-lhe para nos deixar a nós, jovens, falar com as pessoas e tentar explicar-lhes que não vai levar a nada andar atrás dele para o pôr em tribunal. Mas lá está, a iniciativa tem de partir dele, tem de ser ele a reconhecer que também falhou. E aí as pessoas vão estar disponíveis para perdoar, porque ninguém quer estar permanentemente em luta e guerra. Gostava que ele me desse oportunidade de lhe dizer isto tudo, mas também não é algo com que sonhe. Se acontecer, aconteceu. Já o propus, logo em 2011. Nunca me respondeu.

Na história recente acha que Portugal se tem demitido do que deveria ser o seu papel na relação com Angola?

Sim, acho que podia fazer mais. Obviamente que a cumplicidade se instala quando existem interdependências – um lava dinheiro porque precisa de dinheiro e o outro aproveita e assim mata um certo complexo do colonizado transformando-se no colonizador. Mas isso tem mais a ver com as cúpulas dos países do que com as pessoas. Se os povos fossem ouvidos acho que muitos dos antagonismos, sobretudo de lá para cá, já teriam diminuído. O facto de muitos dos investimentos angolanos em Portugal estarem agora a ser retirados só mostra que não deveria haver coisas efémeras que se põem acima da moral e da ética. Mas aos governos interessa mostrar números para serem reeleitos. É por isto que a política como métier me desespera, porque há sempre interesses acima do interesse dos povos. O mundo da política é um mundo muito doentio. Mas as atitudes paternalistas também não são desejáveis… Ainda assim, acho que é importante que exista uma chamada de atenção, que daqui de Portugal se diga que gostariam que nós, que somos irmãos, tivéssemos um pouco melhor, sem pensar todos os dias se amanhã haverá funge para comer. Porque isso não é viver. Acho que o vosso nível de consciência em relação a Angola está agora a aumentar, porque nos últimos tempos muitos portugueses que tinham ido para lá viver estão a regressar.

Pelo que disse não reconhece muitas diferenças no comportamento político entre Portugal e Angola.

A diferença são os checks and balances, aqui em Portugal as pessoas são monitoradas. Por mais que tenham vontade de fazer, precisam de não deixar rasto. Porque existem pessoas e órgãos que não se importam de ir atrás nem que seja de um primeiro-ministro ou de um presidente – vocês têm evidências aqui em Portugal que restauram a confiança na separação dos poderes. Há pessoas que põem a ética acima do resto e que não se calam a troco de dinheiro. Mas não é que a mentalidade seja muito diferente, mas a possibilidade de agir é diferente. 

Vem de uma família que, em teoria, não o colocaria na posição em que está atualmente. O seu pai esteve à frente da Fundação José Eduardo dos Santos. Em que momento começou a aperceber-se que tinha consciência política mas que essa consciência não batia certo com o ser filho de quem era?

Foi progressivo. Comecei a ter pequenos rasgos de consciência política por volta dos 16 anos. Teve muito a ver com o estilo de música em que me meti, o hip hop, e que carrega mensagens e análises, e que as pessoas que o faziam eram sobretudo pessoas que viviam em situações muito piores do que a minha. Alguns desses artistas, que são tão lúcidos e profundos nas suas análises, começaram a provocar-me a sensação de que vivia num mundo de ilusão e que devia fazer alguma introspeção e analisar melhor o que estava à minha volta.

É assim que nasce o Iconoclasta, a sua persona musical?

O Iconoclasta nasce para eu fazer a música que quero fazer. Mas não é que me dê para por comida na mesa, como o Sam The Kid diz, citando o Paredes, “amo demasiado a música para viver dela”. Mas recuperando o que dizia, foi um grupo chamado Filhos da Ala Este e o próprio MCK que começaram a fazer-me entender que precisava de me perceber enquanto membro da sociedade.

O facto de ter tirado dois cursos fora do país serviu para agudizar essa consciência?

Não sabia bem o que queria fazer quando cheguei ao meu primeiro curso [Eletrotecnia]. Fui para aquela área porque era a do meu pai. A meio percebi que não era daquilo que gostava e quis ir fazer Ciência Política, para entender melhor o mundo, e o meu pai disse-me que, para entender como o mundo funciona, devia fazer Economia. Fui e realmente ajudou-me bastante a perceber o mundo. Assim que fui para fora tornou-se ainda mais urgente perceber quem eu era e a história do meu país. Fiz uma grande busca para perceber quem eu era e a minha música – que nunca deixei de fazer, desde 1994 – começa a refletir muito isso. Tenho um tema dessa altura em que digo: “Tenho ideias esquerdistas, pan-africanistas, mas não é à custa delas que a minha barriga nunca esteve vazia. Nunca me faltou o calor na minha casinha, estou aqui a gastar uma bufunfa [dinheiro] que não é minha”. Quando fui viver para fora comecei a questionar-me como é que o meu pai me conseguia sustentar ali.

Isso levou-o a sentir alguma espécie de repulsa em relação ao seu pai?

Não. Acho que é muito difícil julgar. O meu pai esfalfou-se para nos dar o melhor. Sinto que ele até abandonou as suas próprias posições ideológicas para que não nos faltasse nada. Vejo este compromisso pelo lado do amor de um pai. Se nos tivesse faltado alguma coisa por causa da ideologia dele eu não seria hoje esta pessoa e se calhar estava a perguntar-lhe porque é que ele não tinha feito como os outros tendo tido oportunidade. É algo paradoxal e difícil de avaliar.

Nunca se confrontaram em relação a estes assuntos?

Confrontei-o algumas vezes e não me sinto mal por o ter feito. Até porque o meu pai tinha orgulho que os filhos pensassem pela própria cabeça

Acha que ele teria orgulho do que foi a sua vida no último ano e meio, com a detenção e a greve de fome?

Essa resposta não sei dar. Prefiro nem pensar muito nisso. Acho que mesmo que ele tivesse orgulho seria escondido porque estaria mais na posição de pai protetor e pessoa com um papel dentro daquela sociedade e que sabia que a sua capacidade de sustentar a família podia desmoronar por causa do filho. Mas acho que, no fundo, haveria uma ponta de orgulho. A minha mãe diz que quando nasci, o meu pai pegou em mim e disse “esse nasceu líder”. Não sei bem se ele acharia que os meus posicionamentos de choque com aquilo que ele foi seriam de um líder… Vou ficar sempre com essa dúvida.

Em 2011, no palco do Cine Atlântico, em Luanda, disse que o tempo de José Eduardo dos Santos tinha expirado, num momento que assume ter sido planeado. Ou seja, tinha perfeita consciência do que foi ali fazer. Nos anos que se seguiram foi organizando encontros, lançou músicas contestatárias. Tinha consciência de que, mais cedo ou mais tarde, aconteceria uma situação mais extrema, como acabou por acontecer em 2015?

Claro que sim.

Mas ainda assim prosseguiu quase com um lado provocador de quem diz “eu não vou parar”?

A tua leitura é perfeita. Essa noção de que algo extremo podia acontecer está presente na minha vida todos os dias há muito tempo. No dia 7 de março pensei que podia perder a vida ali. Mas o meu compromisso e a minha moral colocam-se acima dos riscos. Comprometi-me, desafiei as pessoas, por isso sinto obrigação de lá estar. Mas sempre que houve situações de porrada eu disse que não ia aceitar viver com medo.

Nunca tem medo?

Tenho sempre medo. É impossível não ter medo. As pessoas que dizem que não têm medo caem no descrédito. Não tenho só medo de morrer ou de ser preso, mas tenho medo do que vai ser da minha família. Mas é preciso saber gerir o medo, porque o medo até pode ser um bom combustível. Sempre que vou para uma manifestação sinto o friozinho na barriga, porque não sei o que vão fazer dessa vez.

Quando foi preso em junho de 2015 era uma sessão que até parecia ter menos potencial para problemas.

Era a nossa sexta sessão daquela série, não estávamos à espera que fosse aquele o momento em que seríamos presos. Mas, repito, estávamos sempre preparados para ser presos. E para pior. Estou sempre mentalizado para o facto de poder morrer. Desde o momento, em 2004, que fiz a música “Kamikaze”, mas sobretudo desde o tal ano de 2011, no Cine Atlântico, que tenho receio que alguém me possa abater. O MCK chegou a ligar-me e a dizer-me: “Luaty arruma as tuas coisas e sai de casa!”. Mas ia para onde? E até quando?

Sente hoje uma espécie de herói, impossível de abater, dadas as repercussões, até internacionais, que isso teria?

Não. Para já não me sinto um herói. Não vou estar a combater a visão que as pessoas têm de mim, mas se me perguntam se me sinto um herói ou um revolucionário, não sinto. Nem me sinto um mártir, até porque acho que os mártires têm de estar mortos. Só sinto que sou uma pessoa uma pessoa que se recusa a sentir-se presa pelo medo.

Logo no início do livro elogia as forças policiais e, nas páginas que se segue, relata vários episódios com estas figuras. Foi algo que o surpreendeu?

É das tais coisas que elogio. Pensava que eles seriam muito mais prepotentes e autoritários, mas senti, às vezes, uma vontade genuína de haver paz entre nós, que eu não os visse como pessoas que me queriam mal, mas apenas como guardiões. Claro que havia momentos de tensão, mas senti que havia ali humanidade. Mas também havia muito medo de ser totalmente humano. Por vezes compreendi isso, outras não. Logo no início passei-me e graças a isso fiquei dois meses sem visitas.

Curiosamente, a partir deste primeiro texto, o que se segue, mais do que um diário de um preso político, é uma espécie de ABC sobre como sobreviver na prisão…

Pois é. E ainda bem, porque isto era apenas o caderninho que tinha comigo na prisão. Um bloco de notas onde apontava o que me viesse à cabeça, como que ia precisar de jeans quando saísse ou como fazer render a água na prisão ou os sonhos que tinha tido – e que na prisão foram muito intensos, como quando sonhei com a minha filha e fartei-me de chorar, ou o dia em que sonhei com uma música completa da Marisa Monte.

A importância das visitas quando se está preso é inversamente proporcional a quando se está em greve de fome?

Sim. Em greve de fome não se quer ver ninguém. É difícil explicar a uma filha ou ao resto da família que se vai morrer por greve de fome. As pessoas querem-nos com elas, mas a decisão de fazer uma greve de fome é algo tão íntimo, tão profundo, que exige tanto de nós, que não pode haver ruído, senão vamos a baixo mais facilmente. É claro que este ruído de que falo não tem maldade, é apenas porque as pessoas nos querem com elas e por isso estão sempre com argumentos para nos demoverem. Por isto, quando comecei a greve, escrevi uma carta, muito seca, a pedir que não me fossem mais visitar e que, se o pior acontecesse, queria ser cremado e que as minhas cinzas fossem deitadas no Mussulo.

O momento em que decidiu que ia fazer greve de fome foi o momento em que decidiu que estava preparado para morrer?

Sim. Na minha mente a greve de fome não é uma ferramenta de protesto para usar de forma leviana, como depois fizeram outros companheiros. Temos de estar cientes do que estamos a fazer. Fui mentalizado para me deixar morrer.

Diz que parou a greve de fome porque sentia que a mudança estava em andamento.

Senti que já conquistado mais do que a minha liberdade, porque o que eu queria era poder aguardar o julgamento em liberdade, era essa a minha exigência. Mas senti que a estupidez do regime fez com este caso e as atenções sobre Angola chegassem a um ponto tal que todo o nosso trabalho em torno daquele livro não teria chegado se não nos tivessem prendido. Quando me passaram para a Clínica Girassol e comecei a ler os jornais e a ver as noticias e a receber as cartas de pessoas de todo o mundo percebi o ponto a que aquilo tinha chegado e que todo o mundo tinha percebido quem era ali o mau da fita.

Acabou por ser amnistiado, no entanto diz não aceitar essa amnistia. Porquê?

Por que essa é uma forma de o regime sair desta situação de uma maneira ligeira. Quero que a justiça seja obrigada a ilibar-nos das acusações. A amnistia é um perdão e eu não quero ser perdoado por algo que não fiz.