Pavão. De repente fez um passe e depois morreu

Dia 16 de dezembro de 1973 ao 13.º minuto da 13.ª jornada. Fernando Pascoal Neves é um dos nomes de uma infinita lista negra…

Há quem diga que estava um céu límpido e azul como os olhos da Michelle Pfeiffer naquela manhã fatal de Hiroshima antes de cair a bomba. Talvez alguém tenha posto a mão em pala na testa, contrariando a luz, para perceber que ruído era aquele que saía dos motores do Enola Gay. Há sempre episódios que prometem a morte. Ou melhor: que precedem a morte.

Em Hiroshima, Morte escreveu-se com maiúsculas. Ou mesmo toda em caixa alta:_MORTE! E com ponto de exclamação. A morte espreita a qualquer momento, mesmo ao minuto número 13. A morte também pode ter listas e referências anuais. Como esta: James ‘Daddy’ Dunlop (11 Janeiro de 1892); James Logan (25 maio 1896); Di Jones (27 Agosto 1902); James Main (29 de Dezembro de 1909); Bob Benson (29 Dezembro de 1909); Nikola Gazdic (22 Maio 1921); Albert van Coile (4 Abril 1927); David Arellano (3 maio 1927); Jón Kristbjörson (17 Junho 1933); Constantin Tabarcea (14 Junho 1963); Nikola Mantov (1 Julho 1973); Jose Antonio Gallardo (15 Janeiro 1987); Gabor Sziboras (1 Setembro 1993); Ivan Krstic (30 Maio 2000); Marc Vivien-Foé (26 Junho 2003);_Miklós Fehér (25 Janeiro 2004); Serginho (27 Outubro 2004); Idrissa Dermé (11 Setembro 2016)…

A lista das mortes também pode ser infinita. Esta assemelha-se a um mural de guerra. Não é! É apenas de jogadores de futebol que morreram no relvado, em pleno jogo. Poderia continuar a escrever nomes e datas até à exaustão. São dezenas e dezenas. Centenas até. Um pouco por todo o mundo como cadáveres estendidos num campo de batalha. Morre-se muito nos campos de futebol. Morre-se muitíssimo nos campos de futebol!

Ninguém se esquece de Miklós Fehér que tombou sorrindo, em Guimarães, já nos descontos, com a camisola do Benfica vestida e depois de ter visto um cartão amarelo. Uma espécie de bilhete para o outro mundo. Uma juventude desfeita de um momento para o outro. Sem aviso…

Mas, porque foi em Dezembro, no dia 16 de Dezembro, vou falar de alguém que não está nesta lista reduzida de gente que não existe mais. Décima terceira jornada, décimo terceiro minuto: 13 + 13.

1973: havia uma chuva miudinha sobre o Porto, nesse domingo, da Cantareira à Foz, sobre o velho casario que se estende até ao mar. Nas Antas, o FC_Porto recebia o Vitória de Setúbal. Os azuis-e-brancos (nesse tempo ainda não havia dragões) tinham de volta um treinador que, in illo tempore, fugira para o Benfica para ser campeão europeu: Béla Guttmann.  Os setubalenses eram comandados por um homem que ficaria para sempre nos corações portistas: José Maria Pedroto.

Braços abertos

Pavão era alcunha. Nada com vaidade; mais o estilo. De braços abertos como asas, segurando a bola, mantendo-a longe dos adversários. Era um FC_Porto de muitos jogadores bons nessa época: Rolando, Oliveira, Tibi, Bené, Marco Aurélio, Nóbrega, Abel, Flávio. E, claro, Pavão.

Fernando_Pascoal Neves. Nascido em Chaves, no dia 12 de Julho de 1947.

Muitas memórias se atropelam sobre aquele minuto 13 da 13ª jornada. Inspirou um livro: Morte no_Estádio, de Francisco José Viegas. Inspirou reportagens e documentários. Aos poucos foi desaparecendo da prateleira das lembranças. Pavão, para muitos, é hoje apenas sinónimo de morte. De mais uma das muitas mortes sobre o esplendor da relva.

Octávio Machado, atual dirigente no Sporting, estava perto de Pavão quando este caiu inanimado nas_Antas. Era, aliás, e segundo me contou há vários anos, quem estava mais perto dele: jogava pelo Vitória de Setúbal e correra na sua direção quando o vira receber a bola. Pavão tinha pés ágeis e era de passes acurados. Precisa da atenção adversária para que as surpresas não brotassem da sua imaginação.

Pavão recebeu uma bola e passou-a para o lado direito, para António Oliveira, um miúdo na altura. Octávio chegou tarde e o golpe chegou cedo direito ao coração: Pavão cai, fulminado. De bruços sobre a relva, mas sem sorriso. Companheiros levam as mãos às cabeças. Os bombeiros correm para dentro do campo arrastando as macas. Sairá do Estádio das Antas numa ambulância barulhenta que veio buscá-lo pela Porta da Maratona. Não voltaria ao jogo. Não regressaria à vida.

«Recordei o silêncio do estádio, a apreensão, a incredulidade e a absoluta perda. Recordaria mais, ainda : o jeito de correr, o modo como abria os braços sem desviar os olhos de todo o campo, de todo o recinto onde se jogava a vida e a morte de cada partida. Recordaria o modo como os seus passes percorriam essa distância como se a bola obedecesse ao seu olhar, como se a bola – por magia, essa magia só acessível aos heróis do futebol – obedecesse ao seu mando», escreveu o autor de Morte no Estádio.

Consternação

Será que, com o tempo, estas mortes se tornaram vulgares? Só em 2016, que agora chega ao fim, há seis registos de mortes nos estádios. No dia 6 de maio, Patrick Ekeng, camaronês do Dínamo de Bucareste, colapsou sete minutos depois de ter entrado num jogo contra o Vitorul Constanta; no dia seguinte, Bernardo Ribeiro, do Friburguense, foi vítima de um ataque cardíaco durante um jogo particular; no dia 9 do mesmo mês, foi a vez da guarda-redes da equipa feminina do Femina Stars, dos Camarões, Jeanine Djomnang,  tombar em pleno período de aquecimento; no dia 15 de agosto, Michael Umanika, médio-centro dos nigerianos do Zagatala viu-se traído pelo coração numa sessão de treino; no dia 11 de Setembro, Idrissa Dermé caiu sem vida durante um jogo da Taça de França; dois dias mais tarde, Dan Wilkinson, do Shaw Lane, equipa dos regionais ingleses, tornou-se a mais recente nota desta lista negra. Mortes atrás de mortes. Algumas em direto, como a do húngaro Fehér, de olhos postos na imagem que o desfaz em campo como um cartucho de papel de embrulho. Corpos vazios.

Passaram-se mais de quarenta anos sobre esse 16 de Dezembro de 1973. Aos 7 minutos, Marco Aurélio fez 1-0 para o FC_Porto. Pavão ainda viveu a alegria do golo. Seis minutos depois estava estendido. Mais tarde o médico do clube, o Dr. José Santana diria: «Reparei que caíra de bruços. Era homem que não fazia fitas. Portanto, tive logo a perceção de que era grave. Entrei no relvado e reparei que estava em estado de coma. Levei-o de imediato ao Hospital de São João. Tentou-se tudo. Fizeram-lhe eletrochoques, mas era uma hemorragia cerebral. Hora e meia depois, tinha falecido. Poderia ter sido rutura de um vaso sanguíneo, talvez em virtude de uma cabeçada na bola.»

Hora e meia. O tempo exato de um jogo de futebol. O FC_Porto-Vitória de Setúbal tornou-se um encontro fantasma. Faltavam setenta e sete minutos para o fim. Assim mesmo: por extenso. Haveria um 2-0, ainda na primeira parte, e uma sensação de perda em cada remate, em cada defesa, em cada passe bem ou mal medido. Depois, no fim, vieram as lágrimas. Dos jogadores, dos treinadores, dos companheiros e amigos. Esperava-se a notícia bruta pelos altifalantes do estádio. Mas eles ficaram em silêncio. Um silêncio de morte.