Amadeo de Souza-Cardoso. Visitar o futuro abrindo a porta do passado

Chegou a Lisboa a melhor parte do que foi, há um século, a primeira exposição de pintura moderna em Portugal, e com ela volta uma sensação que nos tira a certeza sobre que ano – 2016 ou 1916 – está mais perto do futuro

“O mundo não tem idades. A humanidade desloca-se, simplesmente.” É um dos versos na epígrafe da exposição de Amadeo de Souza-Cardoso, em 1916. Manteve-os em francês, como no original, mas a partir daí começam as liberdades. De Rimbaud foi buscar o clarão, mas usou-o para dar voz à sua própria vertigem. Isto está, de resto, inscrito na própria genética da poesia, essa urgência que sacode os meninos, e produz os piores leitores, larápios, reconvertendo todos os sentidos, os iniciados nas disciplinas da desordem.

Cem anos depois seria uma piada de mau gosto assumirmos que temos o futuro, que fizemos algum avanço sobre a ambição e os anseios de Amadeo. “Os meus destinos só estão bem comigo, ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, disse numa carta enviada à mãe, em que, nesse grau irado e grandiloquente próprio de qualquer artista imensamente desamparado, vai mais longe e avisa: “Cautela àqueles que desejam comungar comigo: há na minha alma uma porta de salvamento e uma porta de abysmo. Viverei e morrerei como tudo o que existe.”

Num esforço de, pelo menos, “manter o passo ganho” (outros dos versos de Rimbaud), depois do Porto, chega hoje ao Museu Nacional de Arte Contemporânea do Chiado a exposição evocativa daquela que há um século foi comissariada pelo próprio artista nas duas cidades. É enorme a responsabilidade assumida pelas curadoras Marta Soares e Raquel Henriques da Silva, que procuram acertar as horas de um século para outro, no sentido de produzir “uma continuidade deslocada” – expressão de Flaubert, da qual nos socorremos a partir de um ensaio de Maria Filomena Molder dedicado a Amadeo, publicado na revista “Telhados de Vidro”. E é importante lembrar que Amadeo não foi menos genial na hora de se apresentar ao público português. Contando com o apoio da família, tratou de toda a logística, desde a escolha do espaço, ao transporte das obras, e ainda fez o catálogo, realizou “visitas guiadas” aos jornalistas, deu entrevistas. Em suma, deu a vida inteira àqueles dias. Segurou pela mão e defendeu a sua arte. E há relatos de episódios insólitos, desde uma agressão na rua, nas proximidades do Jardim Passos Manuel, até gente que lhe cuspiu nos quadros.

Foram identificadas 91 obras a partir das 113 que aparecem nos catálogos originais, e 81 têm agora a possibilidade de respirar mais livremente nas cinco salas do Museu do Chiado do que há 100 anos na sala de leitura da Liga Naval, tendo então Amadeo forrado literalmente as paredes da pequena sala. Numa descrição que chegou até nós pelo testemunho de Alfredo Pimenta, num artigo no “Diário Nacional”, ficam claras as dificuldades de Amadeo ao fazer descer a exposição a Lisboa, tendo os seus desenhos ficado dispostos sobre uma mesa, sendo a sua visibilidade prejudicada pela muito deficiente iluminação da sala.

O transplante que agora é feito no tempo conta com as melhores condições em contraste com o que sucedeu da primeira vez. A mostra passou dois meses no Museu Soares dos Reis, no Porto, onde recebeu cerca de 43 mil visitantes. Marta Soares recorda que, em 12 dias, Amadeo conseguiu apenas menos cerca de 10 mil visitantes na mostra original, no Jardim Passos Manuel, por onde se estima que tenham passado entre 25 a 30 mil pessoas. “Mesmo para os padrões atuais é excecional”, adianta ao i a curadora Marta Santos, notando contudo que aquele espaço “já era muito frequentado pela burguesia portuense, tinha imensas sessões de cinema, cafés-concertos, tinha esplanada, restaurante parque infantil… E a exposição tinha entrada livre.”

No Porto, a exposição no Museu Soares dos Reis teve sempre grande afluência. Desde o primeiro dia. “Logo no dia da inauguração, que calhou a um feriado, formaram-se filas enormes. E durante a semana, quase a todas as horas, havia muita gente”. Isto diz-nos que o hiato, se não matou Amadeo, também não admite a ideia de que só agora o seu génio está a ser reconhecido. É esse, aliás, um dos aspetos mais curiosos desta evocação, o ela não se limitar a tentar reproduzir a pouco convencional montagem de Amadeu – que ao invés de organizar a mostra segundo critérios cronológicos ou temáticos, preferiu dividi-la de acordo com as técnicas usadas (óleo, cera, aguarela e desenho) -, mas procurar também ilustrar as reações, nomeadamente dos jornalistas, que ao contrário da ideia que sempre se faz para sublinhar como os artistas estavam muito à frente do seu tempo, na sua expressiva maioria souberam acolher a novidade da primeira exposição de pintura moderna em Portugal. Mais que isso, para desmistificar os pós de escandaleira, a ideia de que a casa veio abaixo, Marta Soares frisou que o “Jornal de Notícias” e o “Diário de Notícias” apoiaram a exposição, ajudando à sua divulgação.

A curadora referiu até que, o levantamento dos recortes de imprensa – reunidos no primeiro dos anexos do catálogo da mostra atual -, proporcionou um duplo movimento de trás para a frente, com alguns dos textos então publicados na imprensa a revelarem preparação, bem como acutilância na observação de alguns elementos marcantes da pintura de Amadeo. “Ele deu-lhes muitas dicas. Deve ter feito o equivalente a notas de imprensa, notando-se que alguns artigos dão a mesma informação”, explica Marta Soares. E, no entanto, “nalguns artigos críticos há elementos muito lúcidos, nomeadamente sobre a capacidade do Amadeo trabalhar variações sobre um mesmo tema, o terem detetado a máquina fotográfica embutida num quadro, ou seja, há elementos nesses recortes que nos ajudam agora a rever as obras.”

Se no jornal “Opinião” se lê o gracejo leviano, hoje completamente desdentado e anónimo, que nos diz – “Está o pintor como certos políticos… Também não há ninguém que os perceba” -, no “Diário de Notícias” outra voz diz de Amadeo – “A sua imaginação tem a faculdade feliz de multiplicar até ao infinito as variações sobre um tema expressivo e decorativo”. Numa entrevista dada ao “Jornal de Coimbra”, João de Sousa Fonseca, então um puto de 17 anos, deixa transparecer a sua admiração face aos largos horizontes a que é conduzido pelo artista, e compartilha com os leitores um desses momentos em que Amadeo pinta no ar um dos seus entusiasmos: “Nesta altura pára e acende nervosamente um cigarro. – O meu amigo nunca reparou – diz-me depois dum curto recolhimento – na beleza extraordinária dum submarino alemão? U-35! O U é uma creação extraordinária. E’ onomatopeico. Uuuuu! É perfeitamente o submarino. Depois dá, pelo seu feitio, o movimento de mergulho e de imersão e a sua [parte?] concava dá todo o abismo do mar.”

Depois há os jornalistas que não só não compreendem mas ainda se irritam pelo que lhes mostra a falha daquilo a que têm por inteligência. A esse título, é exemplar a entrevista que deu Amadeo ao jornal “O Dia”, em que João Moreira de Almeida, a terminar o artigo, confessa: “Sairíamos desalentados se não recordássemos n’esse momento aquele outro futurista, o pobre Mário Sá Carneiro que, andando por terras de França, deu um dia um tiro na cabeça sem que se soubesse porquê.” Além da imprecisão no modo que escolheu para matar o Esfinge Gorda, o jornalista parece rir-se da falta de sorte do poeta, o que é natural porque não se deu conta como este levou a sua grande fome e foi sentar-se à mesa da eternidade. Mas mais que isso, denota um estúpido desdém ao concluir o artigo desejando outra sorte a Amadeo: “Que melhor seja a sorte d’aquele moço insinuante e esbelto que há pouco nos falou entusiasmado da sua Arte na sala de leitura da Liga Naval, agora iluminada pelas côres berrantes dos seus quadros bizarros! Que boa deve ser a vida dos abstraccionistas na dura hora que passa!” 

Marta Soares lembra que, entre outros efeitos, a exposição de Amadeo de Souza-Cardoso veio animar o ambiente artístico, impulsionando uma série de eventos que relançaram o espírito do “Orpheu”, deprimido com a morte de Sá-Carneiro e as dificuldades financeiras que impediram a publicação do terceiro número da revista. Quanto aos jornalistas, e constatando o modo “consensual” como é acolhida hoje a pintura da Amadeo, confessa: “O que acho extraordinário é como eles [em 1916] arriscavam, nalguns casos, a interpretação das obras. Hoje, os jornalistas demitem-se do comentário aos quadros e pedem-me a mim, especialista no Amadeo, para o fazer. Quando isso acontece há um exercício de interpretação que se perde. Gostava que os jornalistas se atrevessem a olhar para as obras e criassem as suas interpretações – válidas ou não. Isso significa dar autonomia aos visitantes. É preciso criar essas aberturas.”