O dedo perdido de Raymond Kopa

No dia 28 de setembro de 1915, Blaise Cendrars estava na guerra. Na I Grande Guerra. Tinha-se alistado como voluntário estrangeiro no exército francês, ele que era natural de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. Perdeu a mão direita em combate e escreveu um livro autobiográfico chamado La Main Coupé. Gosto de Cendrars. É um escritor maravilhoso…

No dia 28 de setembro de 1915, Blaise Cendrars estava na guerra. Na I Grande Guerra. Tinha-se alistado como voluntário estrangeiro no exército francês, ele que era natural de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. Perdeu a mão direita em combate e escreveu um livro autobiográfico chamado La Main Coupé. Gosto de Cendrars. É um escritor maravilhoso que nos faz perder a noção entre o que é real e simplesmente inventado. A mão foge-lhe do corpo: «Um braço seccionado acima do cotovelo, a mão ainda viva mexe os dedos sobre o solo como se quisesse ganhar raízes». Nesse livro há um falso príncipe polaco: Przybyszewski. O homem que, à custa de um camiseiro parisiense, dá à guerra um toque de elegância excêntrica e incompreensível.

Por causa de Cendrars embarquei no Transiberiano. Por causa de Cendrars e de la petite Jehanne de France… Valeu a pena. Por causa de Przybyszewski, lembrei-me de Kopaszewski. Como diria Nelson Rodrigues: por extenso – Kopa. Filho de pais polacos emigrados na Alemanha e fugidos para França depois da guerra:  Raymond Kopa.

Nascido em Noeux-les-Mines, Kopa foi mineiro como o pai e o irmão. Cendrars perdeu uma mão e ele perdeu um dedo, aos 14 anos, o indicador da mão esquerda, num acidente a mais de 600 metros debaixo da terra. Uma rocha caiu de um carrinho e esmagou-o. Nem a falta da mão impediu Blaise de ser escritor, nem a falta do dedo impediu Raymond de ser jogador de futebol. E bom. Ou melhor: ótimo.

Recebeu uma pensão por invalidez e seguiu a sua vida. Primeiro no Angers, depois numa equipa que nasceu com um nome quase tão complicado como o dele, embora não polaco: La Société Sportive du Parc Pommery, mais tarde prosaicamente renomeado Stade de Reims. No Reims jogava um talentoso centro campista chamado Albert Batteux que resolveu ser treinador ainda jovem. Tornou-se no criador do Champagne Football.

Raymond Kopa não era Stanley Matthews, ‘The Wizard of the Drible’, mas as suas fintas ficaram famosas. Estávamos em 1952, e Batteux sonhava com um futebol de arte pura e movimentos plásticos e inconfundíveis. Era um poeta do jogo. Ameaçava Kopa, o filho de polacos: «Se deixas de driblar, tiro-te da equipa». E Kopa driblava este mundo e o outro no seu estilo miúdo e irrequieto, como se ainda estivesse sobre os campos de terra escura da aldeia da sua infância. «Batteux estava vinte anos adiantado em relação aos grandes pensadores do futebol», disse um dia Just Fontaine, que jogou com Kopa na seleção francesa que ficou em terceiro lugar no Mundial de 1958, na Suécia. «Ouvimos determinados treinadores falarem de guerra e de agressividade. Nunca ouvi palavras do género saídas da boca de_Batteux. Falava apenas do prazer de jogar», comentou Jean-Michel Largue que foi treinado por ele no Saint-Étienne.

Kopa jogava na direita, ora como extremo, ora como interior. Não era grande a preocupação: «Batteux raramente falava de táticas. Dizia para puxarmos pela imaginação e para sermos criativos». O Stade de Reims torna-se a única equipa francesa a ganhar  a Taça Latina e está presente na primeira final da Taça dos_Campeões Europeus. Apesar de ter assumido vantagem por 2-0, perde por 3-4 frente ao Real Madrid. Di Stéfano marca um golo formidável. Em breve, ele e Kopa jogarão juntos.

O jornalista inglês Desmond Hackett, o homem que chamou Pantera Negra a Eusébio, deu a Kopa a alcunha de Napoleão do Futebol. Porque era baixinho e controlava todas as teorias do jogo. Só não metia a mão dentro do casaco nem usava um chapéu tricórnio. No Real Madrid, com Di Stéfano, Rial, Gento e Puskas, Kopa foi ele próprio e a sua circunstância. E esteve do lado de lá, na segunda final da Taça dos Campeões entre os espanhóis e o seu Stade de Reims. Depois regressou a casa. «Foram anos lindos! Havia sempre mais de 120 ou 130 mil pessoas no estádio, a assistir aos nossos jogos, e acenavam com lenços brancos como se fossem a espuma das ondas de um mar». Isso num tempo em que lenços brancos não significavam adeus.

Teve mais em comum com Napoleão: a Córsega. Aos exílios do imperador em Elba e Santa Helena, respondeu com a fuga para Ajaccio. Não ter o indicador esquerdo não o impediu de apontar acusatoriamente para o novo futebol que considerava esclavagista e amarrado a esquemas defensivos suportados pela ambição de apenas não perder.  Depois de ter sido o primeiro francês a jogar profissionalmente no estrangeiro, tornou-se também o primeiro futebolista a receber a Legião de Honra. A mesma Legião de Honra que foi instituída em 19 de Maio de 1902. Por Napoleão. Imperador dos franceses sem bola nos pés.