Vasco Santana. Uma invenção de fim de século

Ao sopro do seu nome, de ressonâncias míticas, logo se erguem a sua figura       e a sua voz bem timbrada, a emprestar ao trocadilho um sabor único. Actor de génio – em comédias, operetas, no teatro de revista, no cinema e na rádio – e uma das maiores figuras públicas do seu tempo (com fama…

Nasceu a 21 de Janeiro de 1898 – «grande e cabeludo» – em plena monarquia e em favorecido berço alfacinha. O seu futuro não seria ao estirador, como tudo fazia crer: fascínio por papel e lápis, desenhos continuadamente exibidos no núcleo familiar, uma inscrição no curso geral das Belas-Artes, exigido antes da especialidade.

Na verdade, Vasco Santana trocou as artes plásticas pelas artes do palco, o provável curso de Arquitectura, no qual se chegou a inscrever, pelo ficcionado curso de Medicina no filme Canção de Lisboa, concluído com brilho (até sabia o que era o esternocleidomastoideu!), o título de Sr. Arquitecto pelo nome de «Vasquinho da Anatomia», hoje lendário, e uma existência respeitável e segura pela vida instável da representação, que é nele o somatório não decomponível do seu talento imenso, da extroversão natural da sua figura, da eloquência do gesto que desencadeia o riso jovial, do humor acutilante, da voz e até da arte do improviso. Ficou-lhe o gosto pelo traço, mantido até ao final da vida.

Ao teatro não chegou pela mão do pai Henrique Sant’Anna, conceituado ensaiador (não se falava, então, de encenadores) e cenógrafo da cena lisboeta, mas por via acidental, como compère (o «Palavreado») e enfiado numa mala, como mandava o guião da revista O Beijo (1917), em substituição de um actor subitamente adoecido. O seu tio Luís Galhardo (1874-1929), director artístico da matiné dessa tarde, influente e dinâmico empresário do mundo do espectáculo lisboeta, há-de ter-lhe ficado eternamente grato.

 À estreia imprevista no Avenida (um êxito que lhe arruinou o domingo de touros) segue-se a estreia oficial no Éden-Teatro com a revista Ás de Oiros (1917) e, no ano imediato, a revista O Novo Mundo e a opereta Miss Diabo, seguidas da participação cinematográfica em Lisboa, Crónica Anedótica, um fresco da sua cidade-berço. Em 1920 partia na sua primeira tournée ao Brasil, aonde, entretanto, aproveita para casar com a colega de companhia Arminda Martins. Uma das suas melhores produções estava, por esta altura, a caminho: o filho Henrique Santana, que seguirá as pisadas profissionais do pai. 

Nos anos 20 afirma-se como o galã cómico da companhia do prestigiado empresário Armando de Vasconcelos, participando em sucessivas comédias e operetas no São Luiz, palco onde alcançou uma popularidade que operará uma metamorfose decisiva: a passagem de jovem promissor da boémia teatral a actor consagrado, a abrir-lhe a participação, em 1933, à Canção de Lisboa, de Cottinelli Telmo, onde contracena com Manoel de Oliveira. Voltará à tela com O Pai Tirano (1941), O Pátio das Cantigas (1942), filme onde protagoniza a célebre cena do monólogo com o candeeiro, Camões (1946), Fado, História D’ uma Cantadeira (1948), O Costa de África (1954), entre várias outras prestações.

Em 1934 faz o seu primeiro trabalho na rádio e criará, na década seguinte, o maior êxito radiofónico dos tempos áureos da telefonia, com o seu Zequinha («aquela santa»!), ao lado de Elvira Velez, a Lélé (1947). Os magazines ilustrados, como a Plateia, apostados na criação de uma bolsa de vedetas nacionais, de ora em diante não poderão dispensar «o Vasco», símbolo de uma época, como sugere o título das memórias de Beatriz Costa, a sua eterna noiva-celulóide: Quando os Vascos eram Santanas … e não só (1984). Paralelamente, Vasco Santana, que experimentou todos os novos mecanismos da chamada cultura de massas (o cinema, a rádio, a publicidade, e fugazmente a televisão), torna-se o modelo dos caricaturistas, ao mesmo tempo que é solicitado para múltiplos eventos sociais.

Com o primo José Galhardo manteve uma estreita e profícua relação profissional. Juntos, escreveram peças, revistas, filmes, letras de músicas, numa colaboração que, nos anos 30, permitiu encadear êxitos teatrais e cinematográficos.

Foi, nas suas próprias palavras, em entrevista dada em 1954 a Igrejas Caeiro «uma bela invenção de fim de século». «– Sou do século passado […] Inventou-se o cinema, o telefone, o avião… e o Vasco Santana!». Um mito do cinema português. Chapeau!