Roménia. O povo é quem mais ordena

O governo aprovou uma lei que defendia a corrupção e o abuso de poderes. Os romenos saíram à rua e o primeiro-ministro recuou. O i falou com portugueses a residir no país que deram os seus testemunhos

Até onde pode ir o descaramento de um governo? Ao que parece pelo estilo de Sorin Grindeanu, primeiro-ministro romeno, muito longe.

Estávamos em 2004 quando Saramago apresentou ao mundo o “Ensaio sobre a Lucidez”. Numa das apresentações do seu romance, o Nobel português da Literatura era aplaudido ao denunciar o silêncio à volta da democracia. “Tudo se discute neste mundo menos uma única coisa: não se discute a democracia. A democracia está aí como se fosse uma espécie de santa de altar, de quem já não se esperam milagres, mas que está aí como uma referência. A democracia! Não se repara que a democracia em que hoje vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada.”

Saramago não estava longe da verdade, mas é preciso lembrar que, volta e meia, o povo acorda, soam os sinos e o poder muda de nome. E foi o que se passou nas últimos dias na Roménia.


Há 25 anos, a Roménia estava na rua: era o início de uma nova era para um país oprimido pelo comunismo. A Revolução Romena de 1989 derrubou o regime de Nicolae Ceausescu através da violência, chegando mesmo a executar o político e a sua mulher, tendo este sido o maior manifesto popular alguma vez ocorrido desde os primórdios da história romena.

Na terça-feira da semana passada, as gerações mais velhas relembraram ao poder a “força” da rua. Da esquerda à direita, centenas de milhares de manifestantes disseram “basta” ao governo de Sorin Grindeanu que, numa sessão de “emergência” às dez da noite, no parlamento, aprovara uma lei que facilitava a corrupção e descriminalizava os abusos de poder. A Roménia tem vivido momentos conturbados nos últimos tempos e já em 2015 o primeiro-ministro de então foi obrigado a demitir-se depois dos protestos na rua contra a corrupção. As semelhanças no estilo dos manifestantes é inegável, segundo os especialistas em política e história romena, como é o caso de Cristian Nitoiu, da Universidade de Aston, e Catalin Dumitru, da consultora Kensington Communication, localizada em Bucareste.

Apenas a hipótese de se aprovar este diploma já tinha gerado agitação nas ruas de Bucareste, mas quando o parlamento finalizou a aprovação, sem avisos ou informações sobre o que se estaria a passar, centenas de pessoas começaram a deslocar-se, de uma forma não planeada, para a rua em protesto. No dia seguinte, os jornais romenos falavam em mais de 250 mil pessoas nas manifestações.

O diploma descriminalizaria o abuso de poder e o enriquecimento ilícito envolvendo valores até aproximadamente 45 mil euros e seria aplicado retroativamente. A lei iria beneficiar, entre outras figuras, o líder social-democrata (PSD) Liviu Dragnea, acusado de defraudar o Estado em 24 mil euros. O pretexto seria a necessidade de diminuir a população prisional – a lei incluía crimes de corrupção e teria reduzido ou anulado sentenças para pessoas idosas ou com doenças terminais, independentemente do ilícito em causa, e amnistias para outros casos.

Na passada quinta-feira, segundo a BBC, Florin Jianu, ministro responsável pela pasta do Comércio, abandonou o seu lugar no governo afirmando: “Fi-lo pelo meu filho. Como iria olhá-lo nos olhos?”

Segundo o jornal britânico “The Guardian”, um vice-ministro dos sociais-democratas, Mihai Chirica, também defendeu que o governo deveria recuar em relação ao decreto. Mas questionado por jornalistas, o primeiro-ministro, Sorin Grindeanu (social-democrata), garantiu que o executivo não tinha intenção de voltar atrás. Dragnea, um dos beneficiados com a lei, voltou mesmo a afirmar que o partido e o governo estariam unidos neste tema.

Entretanto, no lado oposto da mesa, o presidente do país, Klaus Iohannis (do campo político adversário), anunciava o pedido ao Tribunal Constitucional para que analisasse o decreto – o que seria então a última possibilidade legal de o travar. O tribunal terá dado uma semana como prazo para o governo e os magistrados (cujo parecer foi negativo, não vinculativo) submeterem os seus argumentos, dando um veredicto 20 dias depois.

Bruxelas ameaçou cortar fundos comunitários


Bruxelas não foi meiga a intervir sobre a situação romena. O vice–presidente da Comissão Europeia, Frans Timmermans, declarou, num debate de emergência sobre a questão, que se o governo não “reconsiderasse” a sua posição e a lei fosse adotada, isso poderia “afetar” os fundos europeus que a Roménia recebe, citou o “The Guardian”.

Antes, já Timmermans e o presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, tinham expressado preocupação numa declaração conjunta, dizendo que “a luta contra a corrupção tem de avançar, não de recuar”.

Há dois dias, o primeiro-ministro Sorin Grindeanu anunciou ao país: “Não quero dividir a Roménia”, declarando que o diploma seria revogado.

Comunidade portuguesa fala sobre a crise

João Gil emigrou para Cluj-Napoca, na Roménia, em outubro de 2015, e segundo contou ao i sempre sentiu que a Roménia “tenta crescer com iniciativas privadas”, existindo “um ambiente muito interessante ao nível da tentativa de inovação”. No entanto, sempre se deparou com problemas quando tinha de comunicar com alguma secção do setor público, porque “o Estado não funciona. Senti que as instituições públicas estão velhas e corrompidas e foram recicladas, não renovadas, após a queda do regime comunista. E neste momento vejo estas manifestações como a soma destes pontos todos”.

Porém, Ioana Anctuta, economista romena de 34 anos, diz que a enorme bola de neve deste movimento cívico começou em 2013, ano em que se iniciou um rol de protestos que “têm acontecido cada vez de forma mais frequente”. A jovem economista não falhou uma única manifestação esta semana. Comentou ao i que, mesmo depois da revogação da lei, “os protestos vão continuar, queremos que percebam que como nação já não confiamos neles e agora vão ter de ser muito cuidadosos, porque vamos estar muito atentos a cada decisão que tomarem”. Silvia F., professora romena de 33 anos, explica que as motivações que a levaram aos protestos desta semana se baseiam na “convicção de que precisamos de nos manter unidos contra a promoção flagrante da corrupção e do abuso. Não importam as diferenças de opiniões políticas nem preferências ideológicas.

Pessoalmente, não sinto os protestos como a abertura de um abismo entre a esquerda e a direita políticas e os seus partidários, mas sim como um desejo universal de lutar contra uma longa tradição de corrupção, mesmo quando ele é expresso através de protestos pacíficos.” Certo é que já se fala na demissão do primeiro-ministro, embora este tenha afirmado que não vai abandonar o cargo.

Diogo Pereira vive no norte da Roménia há um ano e meio e sente que o país se uniu contra um mal comum. “Faz-me pensar que, se nós fizéssemos o mesmo contra tantas injustiças que se passam no nosso país, se calhar, ainda estava a viver em Portugal.” O jovem natural de Cascais descreve a atmosfera das ruas no país: “Revolta é o que vemos nas ruas daqui e é revolta o que a situação me faz sentir. De que lado estar quando um governo cria uma lei que protege as cabeças do Estado desta maneira? Será que podemos chamar a esta instituição governo ou máfia?”

Em Portugal estiveram ontem reunidos em frente da Câmara Municipal do Porto um pequeno grupo de romenos em protesto convocado através do Facebook.