Putin, Trump e a Ascensão do Mundo Multipolar

Em Washington D.C., o novo inquilino da Casa Branca é um bilionário com laivos de celebridade. O protagonista de uma campanha histórica, ao tornar-se no primeiro candidato a conquistar a presidência sem historial ou percurso prévio nas instituições públicas, políticas ou militares do seu país. Em jeito de profecia, três décadas antes da eleição, o…

A partir de Moscovo, um ex-espião do KGB lidera a Rússia com a argúcia que todos lhe reconhecem. Putin impôs-se nos corredores do Kremlin quando, em 1999, o seu país enfrentava a forte possibilidade de perder influência na região do Cáucaso. O então director dos serviços-secretos ascendia à posição de primeiro-ministro numa época conturbada e sem legitimação eleitoral. Ao entregar-lhe o testemunho, o seu antecessor, Sergei Stepashin, considerou que seria suficiente desejar-lhe sorte: «Sorte apenas. Pois tudo o resto ele já possui».  

À primeira vista, a carreira e o percurso individual de Putin e Trump não poderiam ser mais distintos. No seu trajecto, apenas comungavam de três aspectos: o sucesso, o reconhecimento e o rótulo de outsiders. Naturais de Nova-Iorque e São Petersburgo, ambos nasceram nos pólos de contrapoder.

Mas as semelhanças não ficam por aqui.

Em 1989, o espião russo assistia em território alemão à queda do Muro de Berlim – uma visão privilegiada para o declínio da União Soviética, que já se começava a desenhar. Também o magnata do imobiliário de Manhattan presenciou um dos eventos mais relevantes da história contemporânea do seu país: os atentados de 11 de Setembro, que impulsionariam a política norte-americana no Médio Oriente para o novo século.

Quando transportamos esta análise para o campo geopolítico, verificamos também que os desafios com que Trump se depara hoje, não são muito diferentes daqueles que Putin teve de enfrentar no virar do século. Entre estes figuram uma economia minguada por uma dívida pública cada vez mais avolumada, a ambição de modernização militar, os desafios no mundo muçulmano e a necessidade de recuperação do prestígio internacional e da confiança dos seus cidadãos.

No ano da tomada de posse de Putin, a dívida pública russa atingia os 99% do seu PIB. Em 2016, mesmo sendo alvo de sanções económicas, este rácio situava-se nos 12%. Após uma década de batalhas travadas no Afeganistão – terminadas em 1989 por uma União Soviética desgastada –, em 1999 era a região do Cáucaso que se revelava problemática. As tensões separatistas no Daguestão e na Chechénia ameaçavam a credibilidade e a força militar da jovem Federação Russa. A permanência destas repúblicas sob a sua égide constituíram dois testes decisivos para Putin, catapultando a sua popularidade inicial à imagem destes sucessos.

Por sua vez, em 2017, os EUA caminham a passos largos para se tornarem a Nação mais endividada da história da civilização ocidental (cerca de 20 triliões de dólares em dívida). Enquanto em 1999 a dívida pública representava 60% do seu PIB, hoje aproxima-se dos 105%. No capítulo do Médio Oriente, a presença dos EUA nessa região enfrenta um descrédito considerável, em particular pela política iniciada no Afeganistão (doze anos após a saída soviética), pela destabilização do Iraque, o apoio aos ‘rebeldes’ na Síria e pelo surgimento do Estado Islâmico – aspectos fortemente criticados por Trump durante a campanha e nas vestes de civil. A rejeição do novo presidente ao Nation-building, neoconservador e democrata, constitui uma mudança profunda na política externa americana do séc. XXI. Uma postura apoiada pelos militares de baixa patente e pela sociedade civil. A história e os sucessos poderão repetir-se.

Porém, há algo que os distingue: a recuperação do prestígio internacional dos EUA, e a adesão popular no seu interior, dependem de uma retracção da sua presença no cenário internacional, enquanto que a Rússia resgatou o seu poderio ao consolidar a influência sobre os povos do Sul, estendendo a sua preponderância à Crimeia, bem como alcançando o sucesso onde os EUA de Obama fracassaram: intervindo eficazmente na Síria no combate ao ISIS. Simbólica e literalmente, os EUA tendem a recuar enquanto a Rússia expande. 

As movimentações das placas tectónicas geopolíticas não dependem de um só homem. Mesmo que Trump cumpra todos os objectivos que ambiciona, inclusive a colaboração com a Rússia no combate ao terrorismo, dificilmente poderá travar a Emergência de um Mundo Multipolar. A ascensão deste novo mundo, composto por potências de domínio regional – Rússia na Eurásia, e China no Pacífico – porá cobro à hegemonia global americana, a Pax Americana, incontestada desde 1991.

Num conflito de longo prazo (de endurance), o factor determinante que contribuiu para o desfecho da Guerra Fria foi a superioridade do modelo democrático e capitalista americano, sobre o comunismo autoritário soviético. Também no séc. XXI, a batalha pela ‘alma’ da Europa será travada no plano ideológico. Entre a potência marítimo-atlântica (EUA) e a potência terrestre (Rússia), o nosso continente tenderá a dividir-se entre blocos mutáveis: a continuidade do progressismo-liberal e o universalista, oposta à ideologia alternativa: tradicional, iliberal e identitária. O movimento de secessão da ‘Califórnia liberal’ (CalExit) demonstra que esta batalha de ideias poderá ser exportada para os próprios EUA, tal como o modelo democrático e capitalista foi exportado para a Rússia, ainda luziam as cinzas da URSS. 

Assim, Donald J. Trump depara-se com duas alternativas. Poderá ficar para a História como o líder que recolocou o foco no bem-estar interno dos americanos e, ao abandonar o expansionismo americano, tornar-se o Primeiro Presidente Americano do Mundo Multipolar moderno ou – influenciado, entre outros, pelos seus generais – escolher ser o Último Presidente Americano do Mundo Unipolar. Os próximos quatro anos o dirão.

Carlos M. G. Martins