Cordas de um violino macabro

As personagens de Mário Filho são como as de Machado de Assis. Chico Porteiro, Marcos de Mendonça, Carlos Alberto, Friedenreich e Heleno de Freitas não ficam a dever a Brás Cubas, Quincas Borba ou Rubião, o modesto professor de Barbacena, já para não falarmos das excessivas viúvas que passam, etéreas, pelos seus romances. Ler O…

Já falei aqui de Friedenreich: «Friedenreich, de olhos verdes, um leve tom de azeitona no rosto moreno, podia passar se não fosse o cabelo. Levava pelo menos meia hora amansando o cabelo», escreveu Mário. Pensei em falar hoje de Francisco de Barros, o Chico Porteiro, português do The Bangu Athletic Club, guarda da fábrica, um jogador que em quase todos os jogos batia com a cabeça na trave, só via a bola e não via mais nada. «Uma figura! Uma figura!», murmuraria Otto Lara de Resende, grande amigo de Nelson Rodrigues, o mestre da crónica, irmão de Mário Filho. Depois, virei a ponta da caneta. Decidi falar de Heleno de Freitas.

Não foi por acaso. Lembrei-me de Rubião e Barbacena. Barbacena, Minas Gerais: foi lá que morreu Heleno de Freitas, no dia 8 de Novembro de 1959. Estava internado num manicómio. A sífilis comera-lha o cérebro a pouco e pouco. A sua loucura era incensada pelos jornalistas da época. Tomada por génio. Mário Filho escreveu no dia em que o viu falhar um penalti: «Por muito menos, toda a gente sabe, Heleno faz um alarido dos diabos e só falta expulsar de campo o pobre companheiro só porque chegou atrasado à bola, ou só porque teve a criminosa inspiração de arrematar com defeito um passe que era gol certo. Mas domingo, Heleno achou até quem lhe tocasse carinhosamente a cabeça e quem lhe dissesse que aquilo não era nada. Coisas da vida, coisas do Botafogo, onde Heleno é Deus». Esteve oito anos no clube da Estrela Solitária. Viera dos meninos do Fluminense e sairá de lá em guerra como treinador uruguaio Carlo Carlomagno. Tudo por causa do seu pavio curto. Era, como dizem os brasileiros, um esquentado. As brigas entre os dois eram homéricas, embora Heleno fosse pouco mais do que um menino. Carlomagno fartou-se e regressou a Montevidéo.

Heleno de Freitas também não tardou a fartar-se. Foi para o Botafogo e passou a ser odiado nas Laranjeiras. Quando os dois clubes se defrontaram, Heleno foi vítima de uma tentativa de homicídio por parte da torcida do Fluminense: as gargantas arranhavam-se aos gritos de Gilda!, Gilda!, Gilda!!! Gilda era Rita Hayworth, no cinema. Uma bomba temperamental, exigente, exuberante. Heleno, furioso, batia em tudo o que era gente dentro do campo e pegou-se à pancada com Orlando Pingo de Ouro, outra personagem machadiana. E, nas bancadas, cantavam uma modinha de carnaval: «Helena, Helena, vem me consolar». Em troca recebiam manguitos e outros gestos igualmente pouco poéticos.

Heleno de Freitas durou 39 anos. Era o quinto filho de Oscar de Freitas e de sua esposa, Miquita, gente rica das plantações do café que chegou ao Rio de Janeiro em 1933. Foi de tudo um pouco, entre adjetivos e opções de vida: advogado, arrogante, boémio, polémico, galã, nervoso, louco, vaidoso e genial. Dividia-se entre os campos de futebol e os casinos, o Atlântico e o da Utra. Abusava das madrugadas e das bebidas. Moacir Japiassu, jornalista, escreveu na revista Isto é: «Conheci mulheres que perderam a juventude na porta do Copacabana Palace na ilusão de substituírem o lança-perfume nos prazeres de Heleno. Ele chegava, vestido de branco, descia do Cadillac e ia sentar-se na beira da piscina, com uma garrafa do melhor uísque e um balde de gelo. Um homem tão bonito…»

Passou pelo Boca Juniores, de Buenos Aires, pelo Vasco da Gama, foi para a Colômbia, para Barranquilha, jogar no Atlético Junior, foi amado como uma estrela de Hollywood, o craque-cavalheiro, futebolista com maneios de ator de cinema, viciou-se em éter, perdeu a mulher e o filho por causa da sua incontrolável promiscuidade, deram-lhe uma última oportunidade no América: fez um único jogo, ou melhor, um bocado de jogo, no Maracanã e foi expulso por violência aos 35 minutos.

«Os seus nervos doentes eram cordas de um violino macabro», escreveu Andrés Salcedo no livro El Día En Que El Futbol Murió: Triunfo y Tragedia de Un Díos. O realizador brasileiro José Henrique Fonseca levou-o para o cinema, com Rodrigo Santoro no papel de Heleno. O ‘Príncipe Maldito’ acabou vagueando alheado pelas ruas de Copacabana – sujo, maltrapilho, gritando incongruências. Julgava que ainda era Heleno de Freitas.

afonso.melo@newsplex.pt