Carlos Paredes. «Sou um homem que toca guitarra … que tem isso?»

Cedo se uniu à guitarra e como ela formou um corpo único, exprimindo por sons o Portugal ‘terra e raiz’, o Portugal embarcado, a Pátria-Saudade de Teixeira de Pascoaes, não esquecendo as notas trágicas do ‘Portugal Ninguém’ de Garrett.  

A 16 de Fevereiro de um ano particularmente desassossegado do século XX português nascia em Coimbra um menino que havia de trazer ao seu país um património artístico capaz de ombrear com o legado monumental que a História lhe deixara.

Executante superior da guitarra portuguesa, genial criador de música popular, de sabor erudito, Carlos Paredes deixou uma obra musical que muitos têm colocado ao nível do Mosteiro dos Jerónimos.

Da mãe, a quem ficou a dever a consciência política que o conduziu à filiação no Partido Comunista Português, recebeu uma sensibilidade que o relacionou profundamente com a cultura portuguesa; do pai, esse grande mestre da guitarra de Coimbra que foi Artur Paredes, herdou o talento musical acumulado ao longo de gerações sucessivas, impondo, pela sua forte personalidade artística, um novo estilo interpretativo (afastado do «pieguismo langoroso» a que geralmente a guitarra portuguesa estava associada) que o converteu, senão num símbolo da portugalidade, num símbolo deste instrumento, a atraí-lo desde muito cedo.

À guitarra, de que os seus dedos sábios conheciam os mais íntimos recantos (não fosse Carlos Paredes um dos seus mais persistentes investigadores), se uniu desde a primeira infância e com ela formou um corpo único, exprimindo por sons o Portugal ‘terra e raiz’, ético e comunitário, o Portugal embarcado, desejoso de mais ondas e mais mundo, a Pátria Saudade de Teixeira de Pascoaes, numa comunicabilidade sem limites, que não esquece as notas trágicas do ‘Portugal Ninguém’ de Almeida Garrett. 

Ao violino dos anos da sua formação musical, já em Lisboa, cidade onde prossegue os seus estudos e onde frequentará o Instituto Superior Técnico, sem, no entanto, concluir a licenciatura, não se ajeitará o autor de Guitarra Portuguesa (1967), obra marcante, a aliar uma notável inspiração criadora a um virtuosismo estonteante. «Perdeu-se um violinista mas ganhou-se o melhor guitarrista» – terá dito o pai, em jeito de desfecho de uma experiência não pacífica. Deveria ter dito: ganhou-se o melhor guitarrista da história da música portuguesa.

Os seus primeiros passos profissionais deram-se em 1960 com o convite para compor a banda sonora da curta-metragem Rendas de Metais Preciosos, de Cândido Costa Pinto, sobre filigranas portuguesas. Neste trabalho, na sequência do qual gravará o seu primeiro disco (EP Carlos Paredes, 1962), faz-se acompanhar por Fernando Alvim, dando assim início a uma colaboração que duraria quase 25 anos. Em 1984 passaria a ser acompanhado por Luísa Amaro, sua companheira no palco e na vida.

A cadeira foi um móvel omnipresente na vida de Carlos Paredes, iluminada pela sua presença generosa nos espaços restritos que convinham a uma época em que a ditadura apertava as suas tenazes, em colectividades e pequenos espaços do Portugal pós-25 de Abril que percorreu de ponta a ponta, ou nas grandes salas de concerto, em múltiplas actuações ao vivo, pouco visível atrás da secretária onde exerceu funções administrativas no Ministério da Saúde entre 1949 e 1958. Preso pela PIDE neste mesmo ano, expulso do funcionalismo público por pertencer ao Partido Comunista, Carlos Paredes passa a exercer a profissão de delegado de propaganda médica. Em Outubro de 1974, já reintegrado nos quadros do Hospital de S. José, é várias vezes confrontado com a questão da profissionalização: «gosto demasiado da música para viver às custas dela.»

A doença incapacitante vem em 1992 abalar-lhe a vida e interromper-lhe a carreira. A guitarra, agora apenas olhada, será até ao fim uma parceira de afectos, a sua companheira inseparável: «Se eu tiver de morrer, morrerá comigo a minha guitarra». Carlos Paredes esqueceu-se de que Verdes Anos (1963), Movimento Perpétuo (1972), Espelho de Sons (1988), obras fundamentais de uma discografia que contém a marca rara da genialidade, não lhes podiam já dar a morte. Quem os quiser encontrar procure-os também entre os amigos: É preciso um País (1975, com Manuel Alegre), Meu País – Canções (1970, com a cantora Cecília de Melo), Invenções Livres (1986, com António Victorino d’Almeida), Dialogues (1990, com Charlie Haden).