Lourença Baldaque. “Em Lisboa tratavam a minha avó como uma estrela rock”

Neta de Agustina Bessa Luís e também escritora, Lourença Baldaque reuniu em três volumes cerca de mil “Ensaios e Artigos” da autora d’A Sibila. Em conversa com o SOL, fala de uma “avó especial”, presente e afetuosa, mas que seria “impensável ficar a tomar conta dos netos”.

Lourença Baldaque. “Em Lisboa tratavam a minha avó como uma estrela rock”

L icenciada em Arte e Património pela Universidade Católica do Porto, Lourença Baldaque decidiu em 2012 dedicar-se à literatura a tempo inteiro. «É uma vida de muito sacrifício – é bom que isso fique claro – mas é uma vida livre», explica.

Há três anos, correspondendo a um desafio lançado pela Fundação Calouste Gulbenkian, começou a preparar uma edição de todos os textos que a sua avó, Agustina Bessa Luís, publicou na imprensa. Isso implicou apresentar um projeto e fazer um levantamento do material que existia nos arquivos. «Em dois anos foi sempre, sempre a pedalar», diz Lourença. Os três grossos volumes de Ensaios e Artigos (1951-2007), com prefácio de José António Saraiva, viram a luz do dia no passado mês de Fevereiro e serviram de ponto de partida para uma conversa sobre a obra de Agustina, mas também sobre a faceta privada da escritora.

Por que se lembraram de si para fazer este trabalho?

Penso que a escolha foi natural. Eu já tinha feito alguns trabalhos com a obra da minha avó – ainda que nada com esta envergadura – que tinham implicado a consulta de jornais e dos manuscritos, portanto este é um universo que não me é estranho. 

Por onde andou para reunir estes artigos? Pela Hemeroteca, pela Biblioteca Nacional?

Teria sido muito mais fácil fazer o trabalho todo na Hemeroteca, mas infelizmente esteve fechada durante quase todo o período da pesquisa. Foi sobretudo na Biblioteca Nacional, só que algumas coleções de jornais não estavam completas aqui e obrigaram-me a ir à Biblioteca Municipal do Porto. Também contactei a Biblioteca de Coimbra. Finalmente, em meados de 2015, a Hemeroteca abriu e acabei por concluir aí o trabalho.

Teve surpresas enquanto fazia esta pesquisa?

Tive. Não estava à espera de uma colaboração tão longa com o Diário Popular, por exemplo. Na Grande Reportagem a minha avó teve uma colaboração em que respondia a leitores que lhe escreviam cartas. Já sabia que tinha publicado no Diário do Norte, mas não conhecia os textos, e nalguns artigos, sobretudo entre 1951 e 64, tive surpresas com a linguagem que utiliza… É também muito crítica em relação aos intelectuais e ao meio cultural, isso surpreendeu-me bastante.

Que críticas lhes fazia?

Entendia que não eram muito autónomos, não perdiam muito tempo a refletir nas coisas, a pensar. A minha avó entendia que o escritor é uma pessoa que devia ser autónoma e meditativa.

A partir do momento em que já tinha reunido os textos, como foi organizá-los?

Não fiz uma pesquisa cronológica, fiz a pesquisa por publicação, começando por onde me parecia que ia ser mais difícil. No fim, com o material todo reunido, o meu primeiro impulso foi apresentar uma organização justamente por publicação, mas aconselharam-me a tentar uma ordem cronológica, para ver a evolução do pensamento. E acho que sim, que ficou melhor dessa maneira.

E nota uma diferença substancial entre os textos mais antigos e os mais recentes, quer na escrita, quer nos interesses, por exemplo?

Claro que há uma evolução. Há uma certa maneira de escrever que se mantém, que é pegar num mote – pode ser um pequeno acontecimento da época – e a partir daí divagar. Quanto aos interesses, são sempre a escrita, a literatura, as relações entre as pessoas, ou das pessoas com o meio, a sociedade, o que está a acontecer à sua volta, e nesse aspeto é uma fonte inesgotável.

Conhece bem a obra da sua avó? Leu os livros todos?

Não, não [risos]. Há muitos anos que leio a minha avó e continuo a ler. Quando comecei a colaborar com a Guimarães [para a Opera Omnia], comecei a olhar para a obra com outra perspetiva. Ler um livro para fixar o texto ou para comparar a escrita é um trabalho muito diferente de lê-lo para usufruir da leitura. Mas há pessoas, académicos, que são superespecialistas, muito mais do que eu.

Recordo-me de ler, talvez numa entrevista, que Agustina lia cem páginas por dia. Como é a biblioteca dela?

É enorme, muito variada. Tem muitos livros que os autores lhe ofereciam, tem romances, livros de filosofia, livros de correspondência, biografias, alguns livros de política, portugueses, franceses, espanhóis, tem imensa coisa, espalhada por várias salas da casa.

Li que a sua avó leu muito na biblioteca do avô dela. A Lourença também bebeu da biblioteca da sua avó?

Sim. Eu, a minha irmã e a minha mãe. Ainda outro dia vi em casa dos meus avós um livro muito antigo que queria trazer, que é a correspondência da Katherine Mansfield. Comecei a ler a partir desses livros, esses clássicos todos. São livros que continuam lá em casa, e portanto vão continuar a ser lidos. 

Quais são os grandes autores para a sua avó?

Que ela admira? Dostoiévski, Camilo, Tolstoi, os americanos… Nestes artigos cita imenso o Henry Miller – para mim foi uma surpresa, não esperava, porque eu também gosto imenso, mas não via a minha avó a ler o Henry Miller. Gosta muito dos russos e, ao fazer este trabalho, descobri também escritores soviéticos de que nunca tinha ouvido falar. Eram livros que se publicavam em Portugal na altura e a minha avó conseguiu arranjar traduções.

É verdade que era o seu avô que escolhia os livros para a sua avó?

Não diria todos. 

A sua avó não ia às livrarias?

Não ia às livrarias, não gostava. O meu avô escolhia, mas a minha avó também sabia o que queria ler. O meu avô era advogado, trabalhava num banco, mas tinha também o seu escritório ao pé da Livraria Leitura – uma grande livraria do Porto que entretanto já fechou -, e passava lá horas. Penso que, no Porto, era sobretudo daí que levava os livros à minha avó. Depois ficavam até muito tarde a conversar. Era (e é) um casal muito intelectual, nas suas conversas, discutiam imenso, imensos assuntos.

Discutir no sentido de conversar, debater, ou no sentido de terem discussões?

Isso também, de conversar e de divergir.

Sendo público que se conheceram através de um anúncio, sempre se deram bem?

Sempre se deram bem, sim. E acho que a minha avó, como escritora, deve muito ao meu avô.

E o seu avô nunca se importou de se apagar em favor da mulher, que até é o oposto do que normalmente acontece?

O meu avô tirou o seu curso de Direito, em Coimbra, tinha o seu emprego, foi sempre um advogado muito requisitado, foi professor na Ordem dos Advogados, muito interessado no Direito e na Filosofia do Direito, até mandava vir livros de fora. É fascinante ouvi-lo falar de Direito, imensas frases que ele me disse ficaram-me sempre na cabeça. Não acho que se tenha apagado – acho que nunca foi seu desejo ter uma vida pública. Mas acompanhou a minha avó muitas vezes, em viagens, e é um ótimo conversador.

E lidou sempre bem com o sucesso da sua avó?

Nunca me apercebi de qualquer tipo de problema, pelo contrário. Aliás, esta vontade de publicar os artigos, de fazer a Opera Omnia, etc., resulta muito do desejo do meu avô.

Gostava que me falasse sobre a Agustina privada. Foi uma avó afetuosa ou uma avó um bocadinho especial?

É uma avó especial. Sobretudo comparando com as avós que eu conhecia, as avós das minhas amigas quando era mais nova, era diferente. Se eu ia brincar a casa de alguém ou dormir a casa de uma amiga, muitas vezes eram as avós que ficavam a tomar conta de nós. Isso jamais aconteceu com a minha avó Agustina. Seria uma coisa impensável ficar a tomar conta dos netos ou dos amigos dos netos. Mas não penso que era desatenção – pelo contrário, era uma forma de nos educar, também. Era uma avó presente, acompanhava a nossa evolução nos estudos. Não havia confidências, mas era afetuosa, à sua maneira.

Oferecia-vos presentes no Natal e nos aniversários? Lembrava-se dos seus anos?

Sempre, sempre. Havia troca de presentes mas… Mesmo os presentes que oferecíamos à minha avó eram coisas simbólicas, um desenho que se tinha feito, qualquer coisa pequena para a casa. A minha avó gostava de ser ela a comprar as suas coisas maiores e mais especiais.

E a sua avó não lhe oferecia livros?

Curiosamente não me oferecia livros. Mas estava tudo à disposição lá em casa. O único livro que os meus avós me ofereceram foi a Alice no País das Maravilhas.

Sendo Agustina uma escritora muito conotada com o Porto, gostava de Lisboa ou havia alguma desconfiança?

De maneira nenhuma. Eu vivia no Porto – agora vivo cá – e muitas vezes acompanhava a minha avó aqui a Lisboa. 

Vinham de comboio?

Sim. Íamos ao teatro, passeávamos. Quando andava com a minha avó na rua, praticamente toda a gente – isto não é exagero – a cumprimentava em andamento, ‘Boa tarde, dona Agustina’. Era uma coisa incrível. [risos] No Porto acho que não acontecia tanto. O portuense é mais reservado. Era como se fosse uma estrela rock que andava aí – às vezes as pessoas paravam e comentavam qualquer coisa – e era muito abordada aqui em Lisboa.

E gostava disso?

Sim, não se incomodava. Tinha muita paciência para falar com as pessoas. E gosto em ouvi-las.

Gostava de falar com as pessoas simples?

Claro que sim. A minha avó é uma pessoa que sempre esteve muito convencida do seu talento, mas não é uma pessoa arrogante, nunca impunha os seus conhecimentos a uma pessoa que não soubesse ler, por exemplo. Sabia muito bem falar com toda a gente.

A sua avó costumava receber intelectuais ou escritores em sua casa?

Talvez a minha irmã tenha assistido a isso, eu como era a mais nova tive outra relação com a minha avó. Ainda fui conhecendo algumas pessoas, mas não lá em casa, em lançamentos de livros ou conferências a que ia assistir.

Chegou a conhecer o Manoel de Oliveira?

Claro! Conheci o Manoel de Oliveira tinha eu 12 anos. Foi quando ele fez o Vale Abraão, a partir do livro da minha avó, porque ele filmou uma cena numa quinta que nós tínhamos no Douro. Conheci-o quando ele foi lá ver a casa e escolher o sítio onde ia filmar. A mulher dele, a Isabel, era muito amiga da minha avó. Aliás, a relação com o Manoel de Oliveira começa através da mulher.

Chegou a testemunhar a relação de amizade que ele tinha com a sua avó?

A minha irmã, que foi atriz durante muitos anos, trabalhou com ele, e eu fui visitar várias filmagens. Em 2007 ele convidou-me para entrar no Cristóvão Colombo – O Enigma. Nessa altura a minha avó já tinha tido o AVC.

Pode descrever o ambiente nas filmagens para quem nunca esteve lá?

Daquilo que eu assisti, o ambiente de filmagem com ele era muito intenso. Ele era muito exigente, sabia exatamente o que queria, e era muito difícil alguém opor-se – nem valia a pena! Nessa altura do Cristóvão Colombo, ele tinha quase cem anos mas era senhor de uma energia física impressionante, era imparável, mesmo. Lembro-me de uma cena em que me disse para o seguir com o olhar, e eu estava à espera que ele fosse muito devagar e passou quase a correr. Impressionante. O olhar tinha de ser mesmo muito rápido. E era um homem que vivia para fazer filmes, a grande paixão dele era o cinema.

E como era a relação entre ele e a sua avó?

Tinham total respeito um pelo outro, mas também brincavam imenso. Acho que são feitos de uma massa muito particular. Não conheço ninguém assim em Portugal. São pessoas com uma intuição muito grande. Nas filmagens, embora o Manoel tivesse tudo pensado ao pormenor, podia no momento lembrar-se de qualquer coisa e obrigava a mudar tudo, a mudar luz, a mudar o guarda-roupa, alguém tinha de ir descobrir não sei o quê, tinha de acontecer na hora e acabava por resultar. Tanto ele como a minha avó tinham uma intuição enorme e uma grande confiança neles próprios.

A sua mãe disse na apresentação destes livros que quando Agustina estava a escrever sustinha a respiração. Chegou a vê-la a trabalhar?

Cheguei. Mas quando ia lá a casa e a minha avó estava a escrever ou a trabalhar ela parava para conversar connosco. Mas sei que, a partir do momento em que eu saísse, conseguia retomar imediatamente. E podia atender um telefone e mesmo assim retomar, não perturbava minimamente o seu pensamento artístico, digamos assim.

Trabalhava num gabinete ou na sala?

Na sala. É uma sala que tem vista para um pátio, que por sua vez tem vista para o Rio Douro. A minha avó trabalhava sentada numa poltrona, numa mesa redonda não muito grande, onde podia espalhar livros, jornais, o que fosse. Ao lado havia uma mesinha com o telefone, a agenda, um calendário, tudo isso.

E escrevia num caderno?

Não, não. Sempre em folhas soltas. Normalmente A4.

Trouxe comigo este volume da Opera Omnia porque mostra um manuscrito de Agustina. Consegue decifrar o que está lá escrito?

Sim. Acho que é preciso ver do início, mas claro que consigo.

Os manuscritos de Agustina são todos assim ou este é um caso particular?

São todos assim. Ocupam a folha, escreve sem linhas sempre, não entorta a linha. Acho que não mudou a letra ao longo dos anos, não se tornou mais pequenina nem maior. [ver p. 39]

E escreve sempre neste tom azul?

Sim, quase sempre.

Tinha alguma caneta especial?

Por acaso, não. Era este o tom, mas não era uma caneta particular.

É tinta permanente?

Não, é tipo rollerball, esse género. 

A sua avó nunca fazia emendas?

Raramente. Aí não tem nenhuma, às vezes corta uma palavra. O manuscrito era passado à máquina pelo meu avô e, quando era passado, aí os dois tinham grandes conversas, porque sendo o meu avô uma pessoa do Direito poderia haver uma ou outra coisa que não lhe fazia sentido na história. Aí, sim, havia grandes discussões. E a minha avó cortava a discussão.

Cortava?

Dizia que não havia mudanças. Podia haver uma vez ou outra, mas eram coisas muito pequenas. 

A sua avó às vezes matava personagens e depois tinha de as ressuscitar…

Era esse tipo de coisas que irritava o meu avô, exatamente.

Mas isso era por não gostar de corrigir?

Entendia que estava feito. Aliás, lembro-me de um inquérito, publicado neste livro, em que lhe perguntavam qualquer coisa como: ‘Em que está a trabalhar de momento?’. E a minha avó responde que está numa revisão de provas e que é muito cansativo. Queixa-se de que é difícil para ela fazer as provas.

Não gostava?

Não, não gostava. Mas fazia. Às vezes até havia uma leitura em voz alta para ver se soava bem. Era um trabalho de equipa.

Acha que a sua avó se preocupava com o que diziam e escreviam sobre ela?

Acho que não. Mas reagia. Era uma pessoa que se zangava. Embora tivesse sentido de humor, também se zangava muitas vezes, era severa nas suas opiniões.

Pode dar um exemplo?

A minha avó escreveu um livro chamado Super-Homens, em 1948, que foi muito criticado naquela época. Havia um crítico mais velho, o Jaime Brasil, que não gostou do livro, não gostou da linguagem, foi muito crítico da minha avó no jornal e a minha avó resolveu escrever-lhe uma carta. Ele deu uma resposta nada simpática e a minha avó acaba por publicar um opúsculo chamado Os Super-Homens e os Orelhas Compridas [risos] onde denuncia o modo como estava a ser tratada por aquele crítico. Teve sempre essa atitude de defender a sua obra.

Uma vez o livro já impresso, a sua avó costumava ler o que escrevia?

Não creio, nem a estou a ver a fazer isso, sinceramente. Quando o livro era publicado, já a minha avó estava a escrever outro.

E, além de falar com o seu avô, pedia opiniões a alguém?

Não. Nem pensar [risos].

E sentia orgulho, no bom sentido, naquilo que tinha escrito?

Sim, orgulhava-se. Desde muito nova sabia que tinha talento. Sei que no início, muito no início, quando começou a escrever contos, enviou ao Pascoaes. Ele nunca chegou a responder, mas veio a saber-se que tinha lido o livro. Quando estava a começar, a minha avó chegou a enviar aquilo que escrevia a uma ou outra pessoa, a escritores que admirava. Depois libertou-se disso, confiou no seu talento.