Como ela morre. E se não houver famílias felizes?

Hoje ou há 50 anos, uma crise é uma crise. Nesta coprodução do D. Maria II com a companhia belga tg STAN, assistimos às de dois casais, em Lisboa e em Antuérpia, para debater a forma como a literatura nos transforma.

“Les familles heureuses se ressemblent toutes; les familles malheureuses sont malheureuses chacune à leur façon”, repete Isabel Abreu numa personagem a quem não conhecemos nome. Talvez seja o seu, Isabel, casada e com um filho em Lisboa em 1967, a aprender francês com um livro de Tolstoi para perceber que não sabe “como é que as pessoas conseguem viver normalmente”. Cinquenta anos depois, em Antuérpia, é o belga Frank Vercruyssen a tirar o peso ao mesmo livro, “Anna Karenina”, nesta coprodução do Teatro Nacional D. Maria II com a companhia belga tg STAN, que se estreia esta noite no Teatro Nacional, em Lisboa.

A história de dois casais em crise, um português (Isabel Abreu e Pedro Gil), outro belga (Jolente de Keersmaeker e Frank Vercruyssen) com “Anna Karenina” pelo meio, numa peça que, já se percebeu, não é uma adaptação da obra de Tolstoi mas de onde ela não desaparece nunca. O que há, explica Tiago Rodrigues, autor do texto e cocriador deste espetáculo sem encenador (e já aí vamos), é uma relação entre dois casais separados por 50 anos e uns milhares de quilómetros a partir deste livro que é “Anna Karenina” mas podia ser outro. Porque em “Como ela morre” não é a morte de Anna Karenina que importa. “O problema não é se ela morre ou não no livro, é o ‘como’, o detalhe, o pormenor da decisão desta palavra e não aquela que faz com que a literatura tenha ou possa ter nas nossas vidas”, diz Tiago Rodrigues acrescentando que o que vamos encontrar aqui é essa “apologia do poder da literatura”, que tentou dissecar com este texto, que foi sendo construído ao longo dos ensaios e que nos dizia há dois dias que até ao momento da estreia poderia ainda ser alterado.

Versão radical de estar em palco

Para os quatro atores, os ensaios de palco começaram apenas há alguns dias e no ensaio de imprensa a que assistimos no início da semana a peça continuava a ser construída. Criação à medida do processo de trabalho da tg STAN, companhia com que Tiago Rodrigues trabalhou pela primeira vez há 20 anos e para a qual escreve agora o primeiro texto. “Mais do que não haver encenador”, explica, “não há uma decisão completamente fechada de como propor este espetáculo. Há um mapa do que pode acontecer em palco, há obviamente um grande rigor na relação com o texto, mas depois o Pedro, a Isabel, o Frank e a Jolente tomam também em palco decisões a cada noite em função daquilo que é o debate que fizemos à volta de a mesa [nos ensaios de mesa que no caso deles se prolongam praticamente até à estreia] e que agora estamos a fazer ainda em palco.”

Com todos os riscos que há em fazer um espetáculo que se faz a cada noite, sem marcações nem grandes regras, Tiago Rodrigues vê aqui “uma versão radical de estar em palco”, ao dar importância ao teatro com tudo o que ele tem de imprevisível. “Sabemos quais são os ingredientes, sabemos quais são as regras do jogo. Eles estão em palco com um texto que lhes propus a continuar uma conversa que nós temos e a partilhá-la com o público, o que significa que a cada noite podem surgir ideias. Se surgirem, por que é que havemos de fingir que essas ideias não surgiram? Por que é que não havemos de as perseguir nessa noite?”