Muitos portugueses vão à missa, rezam a um Deus que conhecem com base na Bíblia ou na catequese. No entanto, muitos outros creem num ser superior que em nada se assemelha ao que é apregoado pela fé católica. Alguns acreditam na reencarnação, outros vivem em função do karma (o efeito que nossas ações geram no nosso futuro) e há ainda quem não dispense o kippa, uma pequena touca que representa o respeito a Deus. Em Portugal, todas estas religiões existem.
Segundo os últimos censos realizados em 2011, existiam 7.281.887 católicos no país, 347.756 pessoas que praticavam outras religiões e 615.332 que não seguem qualquer uma das existentes. Como se vê, a maioria (81%) professa a fé católica, mas a verdade é que existem muçulmanos, protestantes, budistas e membros de muitas outras cosmovisões em Portugal. Um estudo promovido pelo Alto Comissariado Para as Migrações, liderado pela Universidade Lusófona, propôs-se a mapear todas estas correntes. O resultado foi publicado nos últimos dias.
Começando pelo princípio, importa explicar otítulo. Porquê o termo ‘cosmovisão’ e não ‘religião’ para este levantamento inédito no país? “A palavra cosmovisão abrange uma série de realidades que fogem a uma ideia muito tradicional em torno da palavra ‘religião’”, explicou ao i Paulo Mendes Pinto, diretor da área de Ciência das Religiões da Universidade Lusófona e um dos responsáveis pelo estudo.
Se nas religiões se concebe “uma realidade hierarquizada, com dogmas, como a existência de um Deus, de uma divindade”, há cosmovisões que não preenchem esses critérios. É o caso do budismo ou da maçonaria, exemplifica o especialista. “Mas são formas espirituais que definem a maneira como se vê o mundo e como nos relacionamos com este. Mais do que saber em que é que as pessoas acreditam, o que nos interessa como definição não é o objeto de fé, mas como este leva a pessoa a relacionar-se com o outro e com o que a rodeia”, clarifica Paulo Mendes Pinto.
A publicação ‘Cosmovisões Religiosas e Espirituais – Guia Didático de Tradições Presentes em Portugal’, agora disponível no site do Alto Comissariado Para as Migrações, tem como objetivo mostrar as diferentes visões existentes no país, funcionando como instrumento didático e forma de fomentar o conhecimento da diversidade espiritual. “Há um imenso desconhecimento em relação à diversidade religiosa, ao que constitui cada uma destas cosmovisões e há ainda um fenómeno mais complexo: dentro das próprias religiões, há um desconhecimento sobre os seus próprios elementos fundamentais”, sublinha Paulo Mendes Pinto. “No universo católico, por exemplo, vários estudos internacionais mostram que uma boa parte dos praticantes acredita na reencarnação, quando, no dogma de fé cristão, esta não existe sequer”, explica o autor.
Portugal é um “case study” Muitas vezes, o desconhecimento gera preconceito. Acontecimentos recentes – como os atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova Iorque, e os ataques em Paris, a 13 de novembro de 2015, ambos perpetrados por fundamentalistas islâmicos – acabaram por exacerbar os sentimentos de desconfiança e medo, gerando um maior distanciamento entre as comunidades. Embora em Portugal não haja registo de situações destas na história contemporânea, Mendes Pinto defende que o país poderia funcionar como um “case study” sobre a convivência das diversas cosmovisões. “Não haverá mais nenhum país na Europa Ocidental que tenha tantos lugares e templos, que reúnem diferentes líderes religiosos e onde se sente um clima tão natural”, diz o investigador, que alerta, no entanto, para o facto de Portugal não ter lidado com situações extremas – o que pode mudar as perspetivas que hoje vigoram.
“É muito fácil dizermos que somos tolerantes quando fomos pouco afetados pelo fluxo de refugiados e quando não fomos vítimas de terrorismo. Precavendo situações mais complicadas, temos de criar todas as ferramentas possíveis, como este livro, para fomentar o conhecimento destas cosmovisões”, defende.
Outras religiões Na publicação são elencadas diferentes cosmovisões existentes no mundo e é feita a descrição das que estão presentes em Portugal, que o i publica nas próximas páginas. O Confucionismo, criado centenas de anos antes de Cristo, na China, está entre as que atualmente não têm representação conhecida entre nós. O mesmo acontece com o Xintoísmo, que surgiu no Japão no século VI.
Também o Iazidismo, uma religião sincrética que deriva do Iazdânismo e está ligada a antigas religiões da Mesopotâmia, não é referido nesta investigação. No entanto, os novos fluxos na demografia mundial sugerem que, também aqui, o mundo será cada vez menos estanque e o mapa das religiões poderá continuar a ser atualizado. No início deste mês, chegaram a Portugal 24 refugiados yazidis, depois de terem sido alvo de perseguições e massacres na Síria e no Iraque por parte dos apoiantes do Estado Islâmico.