Provisório ou talvez não

Aos poucos, e à medida que a contagem decrescente para as eleições autárquicas começa a apertar, os estaleiros vão sendo levantados e as obras que martirizaram os lisboetas nos últimos anos vão revelando os novos e bonitos espaços da cidade. Do eixo central ao Cais do Sodré.

Uma boa nova: o presidente Fernando Medina parece ter feito orelhas moucas à opção do seu antecessor António Costa e à recomendação aprovada pelo executivo camarário de substituir por piso menos escorregadio a tradicional calçada portuguesa.

Que resiste. E ainda bem. Ficou, de facto, bonita a praça renovada do Cais do Sodré. Como ficou bem o Saldanha. Com a calçada portuguesa.

Ainda que se mantenham algumas opções no mínimo questionáveis, como a ciclovia misturada com zonas pedonais ou passeios inteiros em que já nada há a fazer e a calçada foi mesmo desta para pior.

Mas além das obras – como as mencionadas – de maior monta, em custo e visibilidade, a cidade viveu nos últimos anos um nunca visto conjunto de intervenções menores (ao nível das juntas de freguesia) que agora estão ultimadas ou em fase de acabamento. E que, com aquelas, somam largas dezenas de milhões de euros.

Sofia Vala Rocha, na sua crónica da última edição do SOL, chama a atenção para o facto de o Tribunal de Contas ter chumbado o empréstimo de dezenas de milhões de euros que a Câmara Municipal de Lisboa foi pioneira a contrair junto do BEI. 

Pode ser um problema para o financiamento de tanta obra. Eventualmente, sim.

Eventualmente, não. O aumento exponencial do turismo na capital e a retoma do mercado imobiliário, sobretudo com o investimento na reabilitação e requalificação da zona histórica, particularmente da Baixa Pombalina, traduziu-se num incremento das receitas fiscais para a CML que – somados aos fundos garantidos – lhe dão desafogo financeiro.

Paradoxalmente, poucos dias depois de ter aparecido um enorme buraco na Av. de Ceuta/Eixo Norte-Sul – felizmente sem as consequências que uma cratera daquelas (cinco metros de diâmetro e oito ou nove de profundidade) faria temer -, a passagem superior na Av. da Índia em Alcântara viu ceder um pilar. Desencaixou-se e obrigou a corte do trânsito e à interrupção da passagem de comboios da linha de Cascais entre Algés e o Cais do Sodré. Um pandemónio.

A ponte é provisória há… 40 anos. A última intervenção mais apurada data do mandato de Santana Lopes, vai para mais de uma dúzia de anos: foi um reforço da estrutura… que continuou provisória.

A Câmara garante que as inspeções têm sido periódicas e nada de anormal detetaram, apontando como causa para o desvio do pilar o embate de um veículo pesado na estrutura lateral do viaduto. Solução: reparar e reabrir ao trânsito.

E lá vai continuar a estrutura provisória… até ver. Ou seja, pelo menos até à execução do Plano de Urbanização de Alcântara, que prevê uma área de construção de 300 mil metros quadrados – entre habitação, escritórios e comércio – com o óbvio impacto nos índices de tráfego.

O viaduto militar foi construído há décadas como estrutura de apoio ao porto e ao terminal de contentores. Nunca foi pensado para servir a cidade e muito menos o cada vez mais intenso tráfego entre o Cais do Sodré e a linha de Cascais ou a Av. de Ceuta. Tão só o acesso à zona portuária.

E assim continua. E há de continuar, se nada for feito, até porque o Plano de Urbanização de Alcântara não determina a sua substituição incondicional.

Pode dizer-se que a estratégia da Câmara de Lisboa de reduzir a acessibilidade automóvel à Baixa Pombalina ganha em eficácia. Mas pelos piores motivos.

João Semedo, em entrevista ao SOL da semana passada, pôs o dedo na ferida. Tal como Lisboa, o Porto mudou muito nos últimos anos. Rui Moreira prosseguiu a política de recuperação e requalificação das zonas históricas e emblemáticas da cidade muito obra de Rui Rio. E o Porto está como nunca esteve.

Cresce, aliás, a ritmo superior ao de Lisboa em matéria de procura turística. 

Tal como Lisboa, ou ainda mais, o Porto está na moda.

Mas Semedo chama a atenção para a necessidade do investimento na mobilidade e nas políticas públicas de habitação. «Não se pode afastar os portuenses da cidade».

A profusão do arrendamento de curta duração e o investimento em equipamentos e infraestruturas essencialmente vocacionados para o turismo, aumenta o risco de desertificação do centro e das zonas históricas a médio e a longo prazo.

É um risco até para o turismo. Porque o turista citadino procura cidades com vida. Em que a hospedaria se faz paredes meias com os residentes locais, de classe média, jovens, menos jovens, idosos. Os bairros típicos só são típicos se mantiverem a sua identidade própria, as suas gentes, com seus hábitos, suas práticas, suas culturas, com comércio tradicional, restaurantes e tascas que não são só para turistas, com a roupa pendurada ao vento, os beirais coloridos com floreiras ou varandas com vasos de barro e os putos a jogar à bola, porque o pião, os berlindes ou carrinhos de esferas já eram.

A fixação dos lisboetas em Lisboa e dos portuenses no Porto é essencial para que as cidades cresçam. Até no turismo.

Há obra feita, mas muito mais por fazer. Os incidentes do viaduto de Alcântara ou do buraco na Av. de Ceuta são meros exemplos do que está mal feito ou mal projetado. E podiam ter tido consequências trágicas. Por sorte, não tiveram.

Lisboa não pode viver de obras de encher o olho e manter-se eternamente provisória. Ou adiada.