Flâneur. Uma casa onde os livros são as chamas em que arde este tempo

Há uma livraria de bairro no Porto que, se vista de fora parece pacata, na verdade está a arder em silêncio. E tem lenha para queimar o mundo

Uma campainha amarrada à porta da loja diz também ao cliente uma coisa que começa a parecer-lhe estranha: atravessou um risco invisível, a sua presença traduz-se numa certa inquietação, mas boa. Acontece ainda nalgumas lojas do comércio tradicional. Quem está do lado de dentro não está necessariamente de vigília a um qualquer deserto dos tártaros. Lá nos fundos, é possível que o lojista, tantas vezes o dono do estabelecimento, desperte dos seus afazeres e espante com a mão a nuvem de algum pensamento denso para atender o cliente, neste caso, o leitor.

A Flâneur é uma livraria que nos devolve a inquietação da nossa presença. Abrimos a porta e uma campainha vai fazer queixinhas. Não há aquela intimidade que se consegue sentir no meio de uma festa, como nas grandes superfícies das cadeias livreiras. Lá desenhamos o nosso mais anónimo percurso, sem prestar contas a ninguém, num modo de flanar de que se sai sempre incólume, sem que um só olhar deponha a sua expetativa sobre nós. Nas grandes avenidas por que passamos tantas vezes quase cegos e surdos, se nos interrompem para pedir indicações ou saber as horas até isso nos molesta. Dificilmente Baudelaire teria a sensação da multidão nas nossas ruas, num tempo em que se prefere existir o mais caladamente possível.

As coisas passam-se de forma algo diferente na Flâneur. Aqui, os livros estão nas estantes e parecem menos arrumados do que achados. É uma livraria que se projeta no futuro recuperando aquelas coisas que gostaríamos de salvar entre o que ardeu. Lembra-nos a resposta inquietante de Jean Cocteau a um daqueles inquéritos banais com que eram achacados os escritores: “Se a sua casa estivesse em chamas, o que salvaria?” Ele respondeu: “O fogo.”

E talvez tenha sido antes de tudo para salvar o fogo, aquele capaz de consumir bibliotecas inteiras, reduzi-las a cinzas, que Arnaldo Vila Pouca e Cátia Monteiro abriram, em setembro de 2015, este espaço arrumado harmoniosamente entre os números 225 e 229 da Rua Ribeiro de Sousa, no Porto. Conheceram-se como colegas enquanto trabalhavam numa Livraria Bertrand e descrevem ao i como da desilusão nas horas de expediente, nas conversas que foram tendo, planearam a sua fuga. A maior cadeia livreira do país impunha-lhes condições que lhes pareceram, primeiro, estranhas e depressa acabaram por tornar-se insuportáveis, diz Cátia, explicando que a rotina logo atropelou o encanto que traziam como leitores inveterados, desejosos de um trabalho que lhes permitisse passar o dia rodeados de livros.

Vamos então às cláusulas em letra miúda e que normalmente ignoramos como meros detalhes, mas que logo nos constroem o cerco infernal que tira o gosto aos dias. Cátia explica que o livreiro era despido de quaisquer veleidades de fazer uso das suas preferências enquanto leitor no atendimento aos clientes. Não havia margem para existir senão nas linhas do “guião” que a empresa distribuía aos “colaboradores” de forma a conduzir os clientes até aos produtos que lhe garantiam mais lucro. A cada semana, esclarecem, havia uma lista de títulos pré-selecionados, e todos os conselhos ao cliente tinham de passar por esse móvel de destaques. Na maioria dos casos, tratavam-se dos livros da própria editora ou do grupo que a comprou, a Porto Editora. Ou seja, aqueles que garantem o sucesso da aposta de integração vertical no mercado do livro.

“Na nossa forma de estar e de ver as coisas, o livreiro tem aquela função de partilhar as leituras de que mais gosta, aquilo que vai descobrindo”, refere Cátia. “E tem de ser uma partilha genuína, senão não faz sentido”. Arnaldo remata: “Sim, éramos obrigados a mentir. Mesmo que não o tivesses lido, devias aconselhar a compra do livro da semana – aquele em que provavelmente teriam uma margem maior.” Sublinha ainda que “tudo quanto se passava ao balcão era completamente artificial”, com os funcionários a cumprirem uma encenação bastante rígida de acordo com “um guião do qual faz parte impingir até os sacos, os diários de leitura, mil e uma coisas”, garante Arnaldo. “Tem de ser seguido escrupulosamente, tens determinados objetivos a atingir… É tudo uma mentira para o cliente, que não sabe disso ou, eventualmente, nem quer saber.”

Cátia frisa que tanto a um como a outro lhes pareceu sempre óbvio o risco de se prescindir do papel que assume um livreiro empenhado, na medida em que não apenas lê e conhece os livros, partilhando as descobertas que faz, mas também no sentido em que procura conhecer as preferências do cliente, que adquire um perfil enquanto leitor. Por essa razão, garante, não pensam hoje nas pessoas que frequentam a Flâneur como clientes, mas como leitores.

Se na Bertrand não lhes era permitido ter uma relação honesta com os clientes, nesta livraria de bairro, a sobrevivência depende do estabelecimento dos laços que levem os que são anunciados pela campainha a serem conhecidos pelo nome, pela aventura particular em que andam investidos enquanto leitores e que os leva ali como quem atraca a um porto seguro para se abastecer de víveres. De resto, e fiel ao espírito de quem já sabe o que quer ler ou se basta com os modos de folhear que hoje a internet e as redes sociais permitem, esta livraria tem uma bicicleta. Chama-se Flânerie e segue a errância dos leitores, entregando o livro em qualquer das ruas do Porto, Matosinhos e Gaia. É um serviço sem custos adicionais além do preço dos livros, mas que, segundo Arnaldo, muitos dos leitores ainda mostram reticências em aceitar. Como se fosse um favor indevido. E Arnaldo, que é quem pedala, tem pena por serem ainda raras as chamadas que o façam andar pelas ruas, ir ao encontro do incerto domicílio de outros flâneurs, como Baudelaire, que chegou a ter 14 moradas em Paris onde ia pernoitando ao acaso, de modo a fintar os cobradores que lhe vinham com a história das dívidas e as ameaças de porrada de todos quantos queriam pô-lo na ordem.

Definindo as prioridades não apenas da livraria mas de um tempo que se explica com a crise, varrendo para debaixo desse imenso tapete as suas falhas ao invés de encarar aquilo que, na verdade, são as novas opções e prioridades – aquelas que aceleram a vida e o consumo, levantando obstáculos ao ócio e àqueles sentidos que só podem ser refinados através da contemplação -, Arnaldo lembra que “muito mais do que aparecer e querer mostrar, nós precisamos de leitores, mais do que de editores de livros ou novos escritores”. E insiste: “É mais urgente educar para ler do que infundir esta ansiedade de novidades, novos escritores, alguns que chegam a pagar para serem editados e todas essas formas de autopromoção tão tristes.”

Assim, esta livraria arde, mas para fora. E os livros recolhidos nas suas estantes participam de uma visão de todo esse mundo que, sob as vãs promessas da glória, condena a um mais desesperante anonimato. Estes livros tornam o silêncio vivo, um murmúrio de inquietações, o tráfico de um fogo antigo, que assim que se cruza a fronteira para o seu reino se percebe como tem o mundo em que vivemos em chamas, numa crítica sem complacências, tão dura que é já uma espécie de juízo final. Basta consultar no site da livraria (www.flaneur.pt) os livros que preferem Cátia e Arnaldo. Livros que não perdoam a este tempo nem os seus crimes, nem a sua ignorância, nem o seu alheamento.

“Aquilo que, na verdade, nós fazemos”, esclarece Arnaldo, “é resgatar livros para os poder ler, ter, folhear, mostrar aos amigos, aos clientes, como se isto fosse a nossa casa, a nossa biblioteca, e os que nos visitam acabam por absorver este nosso gosto pelos livros, partilhando o seu em troca. Se temos um conceito é esse: é como se fosse uma casa.”