João Gilberto Noll. A indigência cultural faz mais uma vítima

Um dos escritores brasileiros mais aclamados, premiados e adaptados ao cinema morreu esta semana e teve o enterro de um anónimo.

João Gilberto Noll vivia sozinho, quase retirado num apartamento em Porto Alegre. Tinha 70 anos, que não é idade para morrer velho. Mas os médicos que a família chamou, olharam o corpo e, à vista nua, não deram por nada que indicasse outra coisa que uma causa natural. O mais provável é que o escritor se tenha simplesmente indisposto de vez com a vida na madrugada desta quarta-feira. Horas depois falhou um compromisso. Ia a meio das sessões de uma oficina literária que orientava na capital gaúcha. Uma prima foi à sua casa e o corpo era já apenas um resto. Houve um certo espanto pela notícia da morte. Aquela conversa habitual dos mais e menos íntimos que sempre se espantam, lembrando como ainda no outro dia, na semana passada, há um mês o viram e estava então, efetivamente, vivo. Nem sequer frouxo, com uma falta de cor,  acenando enquanto um pé mergulhava à frente procurando degraus na terra. Como se estivéssemos habituados a uma certa cortesia da parte da morte, flores, um cartão sinistro, algum aviso para deixar as coisas numa ordem mínima. Mas o pior nem foi a morte, foi o terem passado muito ao longe os barcos de flores. O poeta e cronista brasileiro Fabrício Carpinejar dedicou a sua crónica seguinte àquele que considera «um dos mitos maiores da nossa literatura», e fê-lo com o acusador título: «João Gilberto Noll foi assassinado».
O texto é um poderoso libelo face à «indiferença da sociedade, do poder público e das instituições», que acusa de terem condenado Noll a comer o pão do desprezo diário,  isto depois de ter produzido uma obra reconhecida pelo papel que teve na renovação da prosa brasileira a partir da década de 1980. Cinco vezes vencedor do prémio Jabuti, publicou 18 livros: 13 romances, três volumes de contos e dois livros infanto-juvenis. Com uma escrita que se tornou marcante entre a geração de escritores contemporâneos no Brasil, apesar do seu perfil discreto, e de ser conhecido pela sua reclusão, mantendo-se alheio a grupos e movimentos, os escritores que o foram conhecendo falam de uma pessoa generosa, que sabia estar com os outros, e lia exemplarmente a sua obra. Ao Globo, o escritor Luís Henrique Pellanda lembrou os seis dias que passou na estrada com ele, e como, durante a viagem, «confirmou duas de suas facetas paradoxais: a do homem fechado e a do showman, que eletrizava plateias com as leituras de seus textos».
Se teve o talento de surpreender o seu público, de sair da zona de sombra e quebrar o pacto que mantinha com a solidão, o seu enterro, como conta Carpinejar, foi uma cerimónia «simples, caseira», em que só estavam os familiares e amigos mais próximos. «[N]a capela 9 do Cemitério João XXIII, havia menos de 50 pessoas para se despedir de um dos maiores escritores gaúchos de todos os tempos», nota o poeta, clamando pelo facto de não ter existido nenhuma mobilização popular, nem ao menos a cobertura da imprensa no velório».
É tão longa já a tradição como vasto o rol de grandes escritores que, no seu tempo, vivem desgraçadamente, acabando alguns suicidados pela «indigência cultural» dos seus países, para depois verem os seus dentes usados como colares pela canalha política e pelos responsáveis das instituições que usam os mortos e o seu legado como uma abstração contra os vivos que lhes seguem as pisadas. Carpinejar aponta o dedo à ausência de incentivo e apoio a escritores que, como acontecia com Noll, se dedicam inteiramente à literatura, ficando dependentes dos convites «para palestras, recitais e conferências». E sublinha: «Sua única fonte vinha a ser uma oficina de escrita criativa esporádica.»
Com uma obra por três vezes adaptada ao cinema – Nunca Fomos tão Felizes, de Murillo Salles, em 1984, adaptação do conto Alguma Coisa Urgentemente; Harmada, de Maurice Capovilla, em 2003; e Hotel Atlântico, realizado por Suzana Amaral em 2009 –, tendo sido pago em mais do que uma ocasião por prestigiadas universidades como a de Berkeley ou o King’s College, fosse para dar aulas, fosse como escritor residente, perante a morte de Noll, é difícil não acompanhar a indignação de Carpinejar quando este nota como, tendo residido sempre em Porto Alegre, e retratando a cidade na sua ficção, nunca foi «convidado para lecionar nas universidades gaúchas, logo ele formado em Letras pela UFRGS».
Quanto a nós, só em 2015, no ano em que nasceu a Elsinore (chancela do grupo 20|20), houve direito a uma edição portuguesa de um dos nomes mais admirados pela nova geração de escritores brasileiros. Como era de esperar, no nosso também indigente meio literário, o risco assumido pela Elsinore ao publicar Lorde revelou-se infrutífero. O que só o torna mais louvável.
A morte de um escritor por vezes só adensa a intriga que foi escrevendo à margem dos dias, e torna mais audível o profundo suspiro de algumas obras, aquelas que sabem reagir-lhe, porque admitiram o fim, e, de raiz, foram pensadas como coisas além do escritor. «Um homem que se preza põe a morte/ Por suas próprias mãos a trabalhar», escreveu o poeta português Alberto de Lacerda. Mas o escritor já não saberá dessa outra propagação dos seus sentidos. Não partilhará essa nova alegria.
«Escrever é ter pontaria. Em outras palavras: é pegar pelo rabo o lapso do bom senso e não soltá-lo enquanto perdurar com frescor e ânimo o anseio lúdico, ritualístico. É isso, eu acho: escrever é alegria.» Noll disse isto num breve testemunho – «Por que escrevo» – publicado no site do Instituto Moreira Salles.
Numa entrevista à Folha de S. Paulo, em 1996, justificando o seu desinteresse em «traçar planos de voo» antes de escrever, o escritor explica aquilo que torna a sua escrita tão marcante, e o que fez dele um guia para os poetas que no Brasil procuraram um modo de se expressar através da prosa. «[O livro] sai de um modo litúrgico, procuro abraçar certos momentos de palpitação. Não interessa muito o fluxo insensato de um dia após o outro. Me interessa o momento coagulado. O romance também se esvai, é claro, a duração do tempo também exaure, daí talvez o final do livro, meio enigmático para mim mesmo. Mas, também não procuro decifrar tudo o que escrevo, não. Preciso de uma certa escuridão.»