Alguma Coisa Negro. Fico ali à noite

Jacques Roubaud tem 85 anos, nasceu em 1932 em Carcassone. Poeta maior. Mas também ensaísta, romancista e matemático

A matemática subsume assumida e subliminarmente, consciente e inconscientemente tudo o que escreve. A sua pertença ao grupo Oulipo, com outros poetas-matemáticos e romancistas, é disso testemunha. São oulipianas figuras como Raymond Queneau, George Perec, Ítalo Calvino. 

 A poesia, para existir, teria de ter uma biografia. Aliás, é autor de autobiografia(s) mentais. As vidas de cada um são únicas, mas as palavras que as precedem, não. O efeito da poesia na memória é comparável a uma explosão que, por sua vez, pressupõe a (pré)existência de “forma-poesia” (Stéphane BAQUEY, Université de Provence, “Versificateurs, tout de même. Usages et mentions du vers après le tournant des années 80”, Fabula/Les colloques, Hégémonie de l’ironie?).Escreve noutro livro Roubaud: “A poesia é a única arte de memória pessoal (uma memória) e impessoal (todas as memórias)”. Jacques Roubaud – “Poésie, etcetera: menáge”, Stock, 1995.

Pressupõe, portanto, uma organização métrico-rítmica sobre a esfera linguística. Tudo dependeria então de qual é a singularidade que tal organização atualiza, o que a distingue de qualquer evidência enunciativa e consagra o seu uso da linguagem irremediavelmente enquanto menção. Daí a tonalidade intimamente paródica de várias obras do poeta e da literatura oulipiana, nem moderna, nem pós-moderna, antes uma literatura tradicional pós-tradição. Por isso a utilização-manipulação do soneto ou dessa forma difícil e rara que é a sextina, por exemplo. O romanesco é reatualizado na trilogia de Hortense. Positivo? Nada é simples nem sensível apenas em primeiro grau. Há sempre um compromisso. 

“Alguma Coisa Negro”provém de um corte. Transmigração poética, modo de ir saindo literal e retoricamente da afasia que o engoliu: a da perda com 31 anos de Alix Cléo Roubaud, 20 anos mais nova, fotógrafa de origem canadiana, asmática, vítima de embolia pulmonar, a mulher muito amada (cf. no YouTube a curta-metragem de Jean Eustache).

Formalmente, “Alguma Coisa Negro” é uma maneira de dizer o luto, de reinventar no luto uma (im)possibilidade de poesia. Denegação da denegação. Não-não-verso. Silêncio: não escrevo. Não-não escrevo, logo escrevo. O poeta experimenta a criação de mundos possíveis,. Outros, tal e qual. E “se” mais condicional, refaz mentalmente mundos que Alix Cléo habita. Os gestos comuns e diários, o corpo visualmente sexuado. Como se tudo ainda estivesse ali e se exprimisse, devolvendo o olhar que olha. Seria um mundo paralelo. Não nos esqueçamos, ele é matemático, autor de “La pluralité des mondes de Lewis” (Gallimard, 1991).

A ferida que sofreu interfere no que escreve: “1983: Janeiro. 1985: Junho – “O registo rítmico da palavra causa-me horror./ Não consigo abrir um só livro que contenha poesia./ As horas do entardecer devem ser aniquiladas./ Quando acordo faz escuro: sempre./ Refugiei-me nas centenas de manhãs negras./ Leio prosa que seja inofensiva./ As assoalhadas ficaram na mesma: as cadeiras, as paredes,/ as persianas, as roupas, as portas./ Fecho as portas como se.” O sujeito que enuncia parece querer desviar-se do foco na organização rítmica do texto. Mal, de outra maneira, ela insiste: como aponta José Mário Silva, tradutor e autor do posfácio. O princípio numérico deste poeta-matemático exibe-se no modo de organizar a obra, no estruturar-se em noninas: conjunto de nove partes; cada uma com nove poemas; cada um com verso ou sub-divisões. O poeta alude ao poema que estaria em vias de escrever, mas este mais parece uma meditação descontínua sobre o passado, é constituído por parágrafos que são frases, por vezes longas e que se substituem à unidade do verso, não se exemplifica o que se menciona propriamente. A mulher amada deixa a casa inundada de fotografias em que o poeta se afunda, não é apenas o que está presente em cada uma delas (por natureza ausente), mas o modo de recolher do mundo, o que escreve parece mimar o modus operandi do fotógrafo, o dela. Como se fosse ela a ver e a sacar imagens: universo resgatado entre a luz, a mobilidade das horas e da configuração da luz, e das sombras, da noite. Como se isso se sobrepusesse, alternativamente, ao trabalho da forma do autor, ou servisse de mecanismo inerente à produção da escrita que escreve, médium peculiar, transposição mental do tirar de uma fotografia. “Até à noite/ A árvore mais à esquerda, na janela, tem folhas tão ver-/ des que se tornam amarelas, lá no meio agitam-se pardais./ quase não me apercebo da sua presença./ A igreja, a rua, o abismo de telhados à esquerda da igreja,/ compõem o fundo de uma imagem: duas janelas, árvores /mornas, uma árvore-das-trombetas? Ma olaia?/ Ganhei o hábito de demorar nelas o meu olhar, sentado/ numa cadeira. Sobre a mesa pousei papéis, livros cartas/ que recebo e a que não consigo responder./ à tardinha quando a luz se concentra, e avança, obliqua-/ mente, por vezes transportando algum sol, outras vezes/ não. Até aos meus pés, sento-me nessa cadeira,/ diante da imagem./ Fico ali até à noite./ Não para olhar, porque já vi, não para esperar,/ porque nin-/ guém virá, apenas para manter um gesto, uma continuidade./ à altura dos meus olhos, mais ou menos, fica o ponto onde/ foi composta a imagem, a fotografia, onde se vê aquilo que/ vejo e acabei, preguiçosamente, de escrever.”

Toda esta deriva poética deriva de uma morte. Morte que mostra. O quê? Nada. Isto é a coincidência da morte consigo mesma. A identidade absoluta. A unidade que exclui. O um, isto é, a verdade absoluta. A mão descaída de Alix Cléo. Morta. Deixara de parecer humana, essa mão descaída, a morte em si não é mais humana, é exterior. E a fala pressupõe o dois, o tu. Por isso, o poeta, reconhecendo que em vida se tratavam na terceira pessoa, aqui introduz o “tu” que te nomeia. Trampolim para um universo possível onde permanece o que resta imutável à volta, imagens, objetos, gestos comuns quotidianos, como se fossem a duplos e o seu sentido tivesse sido alinhado por ti. E nesse sentido o poeta, com ele, criando “uma sintaxe, um modelo, cálculos”. Dois mundos, diferentes, mas inseparáveis. Não um solipsismo, mas um “bipsismo”. O pensamento do “outro de dois”. O poeta fala, cala o silêncio, sai da afasia, antes que os olhos dela pelos quais vê se aproximem de nada.

Uma palavra só: Jacques Roubaud é um autor maior. A ler já.