Filha de um colecionador que era também amigo de artistas e arquitetos, Cristina Guerra move-se desde a infância entre figuras ligadas às artes. Em 2001 abriu a galeria com o seu nome, na Estrela (Lisboa), e 16 anos depois é uma das mais pessoas mais respeitadas no meio, participando regularmente nas principais feiras de arte contemporânea, como a Art Basel, na Suíça, e a Art Basel Miami Beach, nos Estados Unidos.
A conversa decorre num escritório situado na cave da sua galeria – o mesmo lugar, revela, onde se fazem «os negócios e os jantares» de inauguração.
Como entrou para este mundo da arte contemporânea?
O meu pai era colecionador. Já muito nova movia-me num meio bastante interessante e tinha uma relação de grande proximidade com o mundo não só das artes visuais como do cinema. Conhecia o Leitão de Barros, o Keil do Amaral, o Carlos Ramos, essa gente toda.
O que fazia o seu pai?
O meu pai foi a pessoa que trouxe para Portugal as máquinas heliográficas [técnica de cópia a cores], por isso é que estava muito próximo tanto de arquitetos como de artistas. Ele ia a Paris imensas vezes, e também a Madrid, e eu ia com ele a exposições. Caí no caldeirão, como costumo dizer. Tive uma educação um bocado burguesa, mas depois dei a volta. Trabalhei com a Ana Isabel Rodrigues, que tinha uma galeria na Rua da Emenda, e mais tarde com a Dulce D’Agro [artista, colecionadora e fundadora da Galeria Quadrum]. Foi aí que passei a ver a arte de outra maneira.
Que tipo de arte o seu pai colecionava?
Colecionava sobretudo as pessoas de quem era amigo: o Thomaz de Mello, o Euclides, o Martins Correia, o Calvet, o Nery. Só para ter uma ideia, eu com cinco anos ou seis já conhecia o Ângelo de Sousa e o António Sena. O Rodrigo também era muito amigo do meu pai…
Tudo num gosto bastante contemporâneo, portanto.
Pode-se dizer que sim.
O que é feito dessa coleção?
Umas coisas vendi, outras ofereci, porque algumas delas hoje valem muito pouco e há pessoas que gostam, de modo que prefiro oferecer. Sou muito pouco ligada à propriedade, sou muito…
Desprendida?
Desprendida. Tenho obras, claro, e quando entram em minha casa normalmente já não saem. Mas é preciso eu estar com elas, caso contrário, se alguém aparecer e eu vir que gosta mesmo de uma obra, sou capaz de lha oferecer. Mesmo a alguns colecionadores. Só há uma coisa que eu adoro e em relação à qual tenho esse sentimento de propriedade: os livros. Sou completamente doida por livros. Muitas vezes até compro a duplicar. Mesmo aqueles livros de que não gosto é muito difícil desfazer-me deles.
Tem muitos livros?
Tenho muitos livros. E não só de arte. Adoro História, por exemplo, gosto muito de ensaio, sociologia… Há muitíssimas coisas que me interessam.
O que estudou?
Tirei Geológicas, porque queria fazer vulcanismo. Entretanto há a revolução e, como ninguém fazia nada, não acabei o curso. Acabei por ser convidada para uma galeria, e foi assim que entrei neste mundo. Ainda andei um tempo no IADE, mas era muito engraçado porque já expunha alguns daqueles que eram meus professores. Mas não era, como se diz, para ter o canudo, era para perceber.
Como escolhe as obras que expõe aqui na galeria?
Tenho um lado muito intuitivo, mas também tenho um lado muito racional. Talvez até por causa dos livros, fui adquirindo um tipo de gosto mais intelectualizado. Essas são as grandes bases das minhas escolhas a nível de arte. E tenho outra coisa: provavelmente porque gosto de arquitetura, preciso de espaço dentro das obras. Já quando tem muita cor… pode haver cor, mas se há muita cor misturada… [torce o nariz] Se calhar tenho a cabeça muito desarrumada e preciso de uma certa serenidade. Há coisas que posso reconhecer que são muito boas mas não me interessam. É como os costureiros. Há roupa que eu reconheço que é fantástica mas nunca vestiria. Gosto muitíssimo de minimalismo e de conceptualismo, portanto as pessoas para me comprarem coisas têm de perceber um bocadinho de arte.
Também se apaixona pelas obras?
É uma relação mais racional. Talvez me apaixone pela ideia ou pela obra de um artista. É o todo que me interessa, não é o objeto em si. Sou um bocado desapaixonada. Mas tenho um lado emocional.
Quem é o seu tipo de cliente?
É normalmente um tipo culto, mas não precisa de ser rico – quer dizer, não são banqueiros nem promotores imobiliários. Há pessoas que têm dificuldades económicas e compram obras, inclusivamente podem pagar em prestações. Tem o caso do António Cachola, que é um assalariado (é financeiro dos Cafés Delta), e no entanto tem uma coleção que o Estado Português não tem. Os meus clientes em geral são uma elite culta, com um gosto muito apurado, porque é muito difícil chegar aqui, olhar e gostar à primeira. E costumo dizer que a partir do momento em que me compram uma obra, normalmente não param.
Não são pessoas que vêm comprar um quadro para pôr na sala.
Este tipo de arte que exponho… Para mim já é muito decorativo, porque é o que eu gosto, mas há muitas pessoas que não veem nada nestas obras.
Nunca teve aquele cliente tipo ‘pato bravo’ que compra arte para se promover socialmente?
Como calcula, não lhes pergunto se é para se promoverem socialmente. As pessoas que vêm aqui têm de perceber um bocadinho, e por norma escolhem as obras melhores. Depois cada um tem as suas motivações.
Há obras que quase precisam de um livro de instruções para que as possamos entender. Não acha que há um certo tipo de arte demasiado teórica?
Os artistas normalmente fazem as coisas sem explicação – fazem-nas, simplesmente. Mas têm sempre fontes, têm referências. O que eles fazem tem de vir de algum lado. O artista é alguém completamente individualista, que tem uma certa ideia e há uma coisa qualquer em relação à qual ele é obsessivo. É como nós, quando somos adolescentes e procuramos a filosofia, a psicologia ou outra coisa para tentarmos perceber quem somos. Os artistas têm muito isso: estão sempre à procura. Normalmente – e para mim é isso que define o bom artista – você encontra sempre referências que só podem ser dele. Agora, por exemplo, o Julião [Sarmento] mandou-me uma obra de um artista chinês que é nitidamente cópia da obra do Julião. Já tem imitadores.
Isso deve ser o sonho de qualquer artista, ser copiado!
No fundo é porque está a fazer história.
Há artistas que têm um discurso muito denso, citam filósofos, etc. Você também tem de ler muito para poder acompanhar os raciocínios e a obra deles?
As minhas escolhas são feitas muito intuitivamente. A partir do momento em que me interessa vou tentar ver mais obras, informar-me. Mas não leio muita coisa relativamente aos artistas. Prefiro falar diretamente com eles. Quando trabalho com um artista mais novo, por exemplo, interessa-me perceber a cabeça dele. Interessa-me a obra, quero perceber o que faz, mas depois tenho de o conhecer. Faço-lhe perguntas, ponho em causa coisas que não percebo na obra dele… ou percebo. Ao fim de tantos anos – já ando nisto desde 83 – quando estou com um artista novo percebo perfeitamente as referências dele.
Consegue detetar as fragilidades?
O que me interessa é que o discurso seja consistente com a obra. Já me passaram tantas coisas pela mão – e se calhar é por isso que não tenho essa preocupação com a propriedade – que às tantas sei perfeitamente o que o artista faz ou deixa de fazer ou o que vai fazer a seguir. Não tenho certezas, mas até hoje não me tenho enganado muito.
Apresentam-lhe muitos portfolios de artistas que tem de recusar?
Eu não trabalho com objetos, trabalho com pessoas. Não posso estar hoje com um artista e amanhã largá-lo. Há quem vá buscar artistas que já têm um nome, que são apostas certas. Outra coisa é trabalhar com artistas jovens, temos de os ajudar a tornarem-se conhecidos. Por isso é que já não quero trabalhar com artistas de 24 ou 25 anos, dá muito trabalho. É quase preciso mudar-lhes as fraldas.
O que tem de lhes explicar que ainda não sabem?
Os artistas em Portugal têm um problema, que é não terem uma noção da gestão de obra. Para eles é fazer a obra e pronto. Por exemplo: para eles a fotografia é um múltiplo, e fazem edições de 5 + 5 [impressões]. Um colecionador detesta ter uma obra que às tantas lhe aparece noutros sítios.
Porque deixa de ser rara?
A obra de arte é mesmo para ser rara. Porque é que a pintura continua a ter um valor especial? Porque é única. Pode haver parecidas, mas não há igual. Na fotografia justifica-se que haja múltiplos, mas tem de haver alguma contenção, caso contrário nunca se vai valorizar muito.
Também de lidar com as angústias e as crises dos artistas?
Às vezes tenho de dar apoio, é normal. Mas hoje em dia não tanto. É por isso também que não me interessa trabalhar com artistas muito jovens. Já tive a minha dose. Todos os artistas têm os seus problemas, aos 40 os problemas não são os mesmos que aos 28.
Que tipo de problemas?
Há uma coisa que é a realidade e outra coisa que é a ideia deles, e a ideia deles é um bocado irrealista, querem sempre mais. Às vezes sinto que tenho de estar a medir forças com eles. Exceto com estes mais velhos. Os artistas americanos, sobretudo, têm os pés muito assentes na terra, são muito objetivos. Aqui em Portugal os artistas ainda são muito românticos.
Não pode haver o problema oposto, de o artista se tornar quase um comerciante, alguém que está mais preocupado em gerir a sua obra do que com a criação?
Acho que não. Atrás da gestão de obra, têm que fazer boa obra. É como eu. Podia trabalhar só com artistas caros – e até os vendia. Mas como quero trabalhar também com os mais novos, tenho de encontrar um equilíbrio. Todos os dias há que fazer opções, se não entramos num buraco financeiro.
Os artistas têm-se num conceito muito alto?
[Hesita] Não, acho é que têm uma forma de pensar muito própria, são extremamente egoístas e um bocado autistas. Mas isso é natural. Por um lado, porque trabalham sozinhos, por outro lado porque muitas vezes as pessoas acham que aquilo não presta para nada e eles têm de estar convictos de que presta, têm de ter uma confiança neles próprios absolutamente incrível. Mas sobretudo têm de pensar na carreira. Se um artista está comigo e crescer mais do que a galeria, não posso ficar aborrecida se ele me disser: ‘Agora já não dá, vou-te deixar’. Tenho de perceber isto. Tal e qual como, para a galeria crescer, há artistas que provavelmente vão ter que sair para outras galerias. Mas larguei muito poucos artistas e muito poucos me largaram.
Como é que deixar de trabalhar com um artista pode ajudar a galeria a crescer?
Se eu quiser fazer mais feiras, provavelmente vou ter de trabahar com artistas mais caros. Tenho artistas que custam entre 3500 e 6000 euros. Ficando eu com metade, é um bocadinho complicado pagar feiras de cem mil euros. Mas tenho de ter muito cuidado para não magoar aquela pessoa. Quando deixo de trabalhar com um artista ele pode sentir que eu estou a dizer que a obra não é boa e não é verdade. Às vezes a coisa não funciona porque nos damos mal, ou porque ele quer mais, ou eu quero mais. E tenho de gostar da pessoa que está por trás da obra.
Não dissocia a obra do autor?
Não consigo.
Se for um tipo insuportável não consegue gostar da obra?
Pior ainda: quando deixo de trabalhar com um artista, já não consigo gostar daquilo. É estranho mas é verdade.
Na venda de uma obra, quanto fica para o artista e quanto fica para a galeria?
50/ 50.
Não há artistas que se queixam?
Não. Ao contrário do que muita gente pensa, o mundo da arte contemporânea tem regras muito bem definidas. Hoje o mundo é global e eu já percebi isso há muito tempo. Por isso é que no segundo ano de galeria já fazia Miami e depois estava a fazer Basel [a maior feira de arte contemporânea da atualidade, na Suíça].
Quanto custa participar numa grande feira como a Art Basel?
Só o stand, que tem qualquer coisa como 60 metros quadrados, custa 100 mil euros.
Se não fosse lá, quais seriam as consequências? Era como um clube de futebol que não ia à Liga dos Campeões?
Não é bem assim, porque teria de fazer outras feiras. Iria para outra feira qualquer, e há feiras boas. Mas prefiro estar em Basel porque é uma referência. Há um comité que faz uma seleção rigorosa e nem toda a gente consegue estar lá. E estamos sempre sujeitos a que nos ponham na rua. Uma vez facilitei e deixaram-me um aviso.
A dizer o quê?
A dizer para ter mais atenção à qualidade das obras expostas. Por isso é que, para conseguir aguentar a ‘primeira divisão’, em que é tudo mais caro e difícil, tenho de ter bons jogadores, que neste caso são artistas.
Na Art Basel de Miami há aquelas personagens extravagantes ou a feira é parecida com as da Europa?
Não, não é nada parecido com a Europa. Para mim é muito extravagante.
Veem-se pessoas conhecidas?
São muito aqueles modelos e há homens vestidos com plumas e sapatos de salto alto. É uma ‘fauna’ completamente extravagante e desvairada.
E pelo meio disso vão comprando?
Também há pessoas que considero normais, com um pensamento mais europeu, e são essas que me compram. Os outros andam ali mais para se mostrar.
Há festas e jantares?
Há muitas festas e muitos jantares, mas normalmente mantemo-nos um bocadinho à parte porque fazer uma feira é fisicamente pesado. Basel também é pesado mas noutro sentido. É muito mais interessante, as pessoas veem as obras e querem saber mais sobre o artista. Em Miami no ano passado felizmente houve uma maior sobriedade, coisa que eu prefiro, porque pessoas loucas e desvairadas não faz muito o meu género.
Esse pitoresco local não tem uma certa graça?
Está bem, mas pagar cem mil euros para ver pitoresco… Para isso prefiro ir ao Carnaval do Rio.
Em alturas de aperto, as pessoas começam por cortar naquilo que é supérfluo. Sentiu muito a crise?
Claro que se notou. Foi terrível, sobretudo em 2009, 2010 e 2011. E ainda não está bem, mas está melhor. Eu tenho a vantagem de vender muito para fora.
Nas feiras ou noutros circuitos?
Tenho clientes que vêm de propósito a Lisboa para virem à galeria. Estou a alargar um bocadinho, se não já tinha fechado. Os museus não compram, as instituições não compram, e quando compram demoram imenso tempo a pagar. Muitas vezes as coisas sobem e eles ainda não nos pagaram. Mas interessa-nos que um artista nosso esteja num museu, portanto aguentamos. Isto é um bocado terrível, mas é a realidade portuguesa. Há uma falta de vontade – acho que é falta de cultura, provavelmente até dos primeiros-ministros, porque se não escolhiam uma pessoa para ministro da Cultura que percebesse o que está a fazer. Isso existiu no tempo de Mário Soares, que gostava de arte. António Guterres também gostava de arte e Durão Barroso às vezes passava aqui uma hora e meia comigo na galeria. Não comprava, mas falava e sabia. Quando estava em Bruxelas chegava a sair às oito da manhã para estar às nove em Ghent para ver exposições.
Disse-me que vendia obras na casa dos 3-6 mil euros. E a mais cara que já vendeu, qual foi?
Uma obra do Baldessari. Foi a obra mais cara que vendi até hoje. Meio milhão de dólares.
Foi a um colecionador português?
Sim. E a obra está cá em Portugal. Foi há relativamente pouco tempo. E não se pense que foi um banqueiro que a comprou.
Quem estabelece o preço de uma obra, o artista ou o galerista?
Os dois. Os artistas têm uma cotação e essa cotação, dependendo de como está o mercado, ou se sobe ou se mantém – nunca se pode descer. Desde 2008 até há um ano tive os preços estagnados. E agora subi-os. Vou fazer uma exposição do José Loureiro [inaugura a 18 de abril] e também vou subir um bocadinho.
Não há artistas que queiram pedir preços demasiados elevados?
Os artistas locais podem pôr os preços que quiserem, mas estamos num mundo global e os preços não são por acaso. Por isso é que eu digo que isto tem regras. Os preços de um artista têm de ter relação com o seu currículo. Um artista não pode logo querer ter preços de três mil euros.
Mesmo que a obra seja muito boa?
Não deve. Se um artista que não fez nada na vida aparecer aqui a pedir-me três mil euros, tento dizer-lhe por que não deve ser assim.
Viu um artista que há pouco tempo se fechou sete dias numa rocha?
Não.
Ele escavou o interior da rocha e preparou mantimentos para aquele período. A obra seguinte foi chocar ovos de galinha, sentou-se em cima deles até eclodirem. Já houve artistas que lhe apresentassem propostas deste género?
Não, até porque um tipo que me viesse com uma conversa dessas acho que não era bom da cabeça, portanto estava logo afastado.
Há muitos artistas que são prima-donas?
Hoje, quanto mais importantes são os artistas, menos prima-donas são. Um tipo que é um grande artista tem de ser um grande ser humano. Há o Dalí, que era um bocado desvairado…
E o Picasso…
O Picasso era o que era. Mas são épocas diferentes. Hoje em dia um artista é um tipo profissional. É alguém que faz bem o que faz e que vive no mundo real, embora com todas as suas idiossincrasias.
Tem conhecido grandes seres humanos?
Tenho. O Lawrence Weiner, o Baldessari, o Robert Barry. Como seres humanos são superiores.
Em que sentido?
São tipos duros, exigentes, mas também são muito compreensivos e já não têm aquelas inseguranças das pessoas mais novas. Já não precisam de demonstrar nada a ninguém. São extremamente generosos e intuitivos. E extremamente inteligentes. O Baldessari mais pacato, o Weiner extremamente brilhante. Às vezes riem-se com algumas perguntas que lhes fazem, mas entendem-nas. Por norma têm uma grande paciência.
Sabedoria?
É sabedoria, no fundo. Serenidade. Percebem perfeitamente o outro, desde que o outro os respeite. Já os vi duas ou três vezes ‘passados’, mas é muito raro.
Lembra-se de alguma situação particular?
Lembro mas não lhe vou contar.
E não há grandes artistas que sejam execráveis?
Deve haver. Há tipos que têm mau feitio, mas tenho a sorte de não trabalhar com esses.