Quando Antonin Scalia morreu,em fevereiro de 2016, o clima de campanha para as Presidenciais disparou.
Scalia era visto como um peso pesado do conservadorismo entre os juízes do Supremo Tribunal dos Estados Unidos – a mais elevada responsabilidade federal norte-americana em termos de justiça.
Scalia era um originalista, ou seja, procurava interpretar e proteger o significado primordial da Constituição desenhada pelos ‘pais fundadores’.
O Supremo Tribunal, o último apelo legal a que um cidadão americano pode recorrer e uma das instituições de maior controlo ao Presidente, tem nove lugares, de modo à decisão não empatar e é de nomeação vitalícia.
Depois de Scalia falecer, os juízes conservadores e os juízes liberais ficaram numa proporcionalidade ineficiente e Barack Obama, ainda na Casa Branca, nomeou Merrick Garland para o lugar deixado vago.
Garland, visto como um moderado, não teve sequer direito a uma audiência no Senado – a assembleia eleita que aprova (ou não) o nomeado presidencial. Do ponto de vista dos Republicanos, o nomeado teria que ser apontado pelo Presidente a eleger nesse ano e, numa atitude sem precedentes, a Merrick Garland foi largamente ignorado pelo Senado de maioria republicana.
E é aí que chegamos a Neil Gorsuch.
Depois de Donald Trump, contra tudo e todos, ganhar a eleição para a Presidência, indica Neil Gorsuch como seu nomeado para o Supremo Tribunal.
A ala mais conservadora do Partido Republicano rejubilou. Gorsuch era visto como o herdeiro perfeito de Antonin Scalia.
Mas será mesmo assim?
É certo que também se trata de um conservador, um juiz experiente, académico nas melhoras universidades da Ivy League, etc.. Trabalhou no Departamento de Justiça durante o governo de George W. Bush. No entanto, se Scalia era um originalista que buscava a fonte na Constituição, a fonte de Neil Gorsuch é mais elaborada.
Scalia tinha uma análise de coerência quase mecânica: a Lei diz isto, só se faz isto, sem devaneios. Gorsuch, de 49 anos, não é bem assim. Sendo também um conservador do texto constitucional, aprecia, por outro lado, a doutrina da lei natural, da defesa intrínseca da vida, do papel da religião na sociedade.
Falamos do homem que se pronunciou favoravelmente a que fossem as empresas a decidir se as suas empregadas teriam direito a planeamento familiar, portanto, a contracetivos e à Interrupção Voluntária da Gravidez [IVG].
No seu doutoramento, defendeu a vida “como valor fundamental e inerente” contra o aborto ou a eutanásia.
Questionado sobre o que faria quando confrontado com o caso Roe vs Wade em tribunal – o precedente legal que garante às mulheres americanas o direito à IVG -, Gorsuch afirmou que preferiria sair da sala. Trump, que o nomeou, prometeu em campanha ilegalizar o aborto federalmente, assim como ao casamento por pessoas do mesmo sexo.
Se Scalia era visto como inamovível perante o texto da lei fundamental, Gorsuch tem um percurso inamovível em tentar moralizá-la.
Por tudo isto, a sua aprovação no Senado previa-se difícil e assim está a sê-lo.
O Partido Democrata, sedento de vingança, concedeu-lhe a audiência que Merrick Garland não teve por parte do Partido Republicano e a simpatia terminou por aí.
Pais de filhos deficientes foram ouvidos, queixando-se da visão minimalista de Gorsuch ter feito com que as crianças fossem prejudicadas no sistema de educação público. Senadores escrutinaram todo o percurso do conservador, descobrindo, por exemplo, que este deixou uma empresa despedir um empregado por abandonar um veículo de trabalho quando este deixou de funcionar e a temperatura local rondava os graus negativos.
Gorsuch reencaminhou todas as questões para o seu currículo e deu respostas vagas que muito irritaram os democratas. O nomeado recusou até reunir com o partido da oposição.
Tendo os republicanos apenas uma maioria de 52 para 48, os democratas podem ‘filibuster’ – isto é, discursar tantas horas que os trabalhos nunca avancem – até o nome de Neil Gorsuch cair. Assim têm feito. Esta semana, Jeff Markley, do Oregon, esteve mais de quinze horas consecutivas a falar no Senado.
A chefia do Partido Republicano deve tomar medidas drásticas e votar para alterar a lei que permite aos democratas fazer ‘filibuster’ a nomeações para o Supremo Tribunal; uma alteração para que a sua maioria simples chega e sobra.
No final deste mês, a Constituição dos Estados Unidos da América poderá ter o seu primeiro guardião naturalista. E será para a vida.
Publicado originalmente na edição impressa do b,i. de 8 de abril de 2017