França. Marido de polícia gay discursa contra Le Pen diante de Le Pen

Etienne Cardiles discursou diante da República Francesa em peso. O viúvo do polícia alvejado por um radical islâmico não se coibiu de lembrar o marido como homem alegre e culto, que queria aprender a falar inglês como Emmanuel Macron. “Não terás o meu ódio”

“Terça-feira, como sempre, saí do trabalho e ainda estavas a dormir. Durante o dia, falámos dos nossos planos, de ir de férias para um país bem longe, e disseste-me que estavas entusiasmado, que nunca tinhas ido tão longe. Voltei para casa à tarde, sem ti, mas com uma dor extrema e profunda”.

As palavras são de Etienne Cardiles, o homem que era casado com o polícia francês assassinado pelo Estado Islâmico esta semana nos Campos Elísios.

A república francesa esteve em peso na homenagem ao agente, Xavier Jugelé, de 37 anos. Este era um ativista pelos direitos LGBT e foi um dos polícias que respondeu ao ataque terrorista no Bataclan, em 2015. Meses mais tarde, assistiria ao concerto de Sting que reabriu o espaço.

Na passada quinta-feira um terrorista abriu fogo nos Campos Eliseus e Xavier Jugelé pereceu, tendo dois outros agentes sido atingidos, e um deles mais tarde falecido devido aos ferimentos.

Na cerimónia de despedida de Jugelé, marcaram presença o presidente francês, François Hollande, o ministro Bernard Cazebeuve e vários outros membros do governo, o vencedor da primeira volta das eleições presidenciais, Emmanuel Macron, a sua adversária para a segunda volta, Marine Le Pen, embaixadores, instâncias militares, chefias de segurança e um homem, naquele dia mais solitário, diplomata de profissão, chamado Etienne Cardiles.

Cardiles era casado com Xavier e foi perante a perante o Estado francês e a comunicação social que proferiu um sentido louvor ao homem de quem agora é viúvo. “Esta dor fez-me sentir mais próximo do que nunca aos teus colegas, que também estão, silenciosamente, em sofrimento – e outra pausa – como eu: silenciosamente”, descreveu Cardiles.

O discurso do viúvo contrastou veemente – e talvez propositadamente – com a mentalidade preferida pela Frente Nacional de Le Pen. “Quanto a mim, estou a sofrer sem ódio”, citou, elogiando a frase que outro francês afirmou quando perdeu família nos atentados de 2015. “Quando recebi as primeiras mensagens a dizer que tinha acontecido qualquer coisa nos Campos Elísios, que um polícia tinha morrido, uma pequena voz disse-me que eras tu. Disse-me que eras tu e trouxe-me de volta àquela generosa e reconfortante frase: ‘Não terás o meu ódio’”.

Etienne caracterizou depois o marido, como alguém distante das retóricas mais ortodoxas da sociedade.

“Eu não sinto ódio, Xavier, porque o ódio não és tu. Porque o ódio não tem nada a ver com o que tu eras, com o que fazia o teu coração bater, nem com aquilo que te fez alistar numa força policial. Porque o serviço público, ajudar o outro e proteger todos, era parte da tua educação e das tuas convicções. Porque a tolerância, o diálogo e a temperança eram as tuas armas mais poderosas”.

As palavras pareceram afastar-se da política, mas o significado permaneceu.

“Esta era apenas uma das facetas do que homem que eras. O teu outro lado como homem era alguém cheio de alegria, de cultura, que adorava música e cinema. Ir ao cinema num domingo de Agosto cheio de sol para ver cinco filmes de seguida não te faria pestanejar”, prosseguiu o francês, no púlpito.

“Preferirias ver a versão original [sem legendas] purista como eras, para que pudesses melhorar o teu inglês – uma língua que querias dominar na perfeição”, e uma câmara saltou pertinentemente para o rosto de Marine Le Pen, impassível.

É que a candidata da Frente Nacional à presidência francesa, a disputar no próximo 5 de maio, criticou recentemente Emmanuel Macron por falar em inglês num evento de campanha realizado no estrangeiro. Macron fala o idioma na perfeição.

“Poderias ir ao mesmo concerto uma e outra vez, às vezes seguindo um artista pela tournée inteira. As tuas estrelas favoritas eram a Celine Dion, a Zazie, a Madonna, Britney Spears e tantos outros que faziam as nossas janelas tremer. O teatro transportava-te para outro mundo, onde vivias em pleno. Não te abstinhas de nenhuma atividade cultural: ias ver os piores filmes na sua estreia, até ao fim, independentemente do quão maus fossem”, contou Cardiles. “Uma vida cheia de alegria e risos, na qual o amor e a tolerância eram os teus incontestáveis pilares, viveste como uma estrela, partiste como uma estrela”.

Perante a relutância dos partidos moderados em confrontar a crescente islamização da França – sendo que a religião muçulmana possui pouca tolerância perante estas minorias – alguma comunidade LGBT tem-se aproximado da Frente Nacional, mais assertiva em temas securitários. Etienne Cardiles não compactua com essa aproximação.

O elogio tornou-se viral nas redes sociais e recebeu forte aplauso mediático.