Celebrações de Abril: uma omissão imperdoável

Nunca consegui habituar-me ao folclore das celebrações, não tenho paciência para conversa mole e, para teatro, prefiro o D. Maria.

A exceção vai para o dia 25 de Abril, e a razão nada tem de nacionalismo. Estará, talvez, no facto de ter experimentado, naquela primavera de 74, as maiores emoções da minha vida: o nascimento do primeiro filho e a Revolução.

Sigo as celebrações sempre com orgulho genuíno, mas este ano fiquei com uma desagradável sensação de ‘poucochinho’. Na paz mansa do debate partidário, com a esquerda a marcar pontos e a direita a perder por falta de comparência, os discursos não cumpriram os mínimos. De positivo, apenas, as referências a Salgueiro Maia, Mário Soares, D. António Ferreira Gomes, e ao papel do povo português na construção da democracia. No resto, foi o ‘marcar de ponto’, em tudo semelhante ao vazio dos debates parlamentares. Ou os partidos assinaram um inaudito tratado de paz, ou consideram que os tempos não aconselham a fazer ondas. Cada um terá as suas razões, mas suspeito que a proximidade das autárquicas não será alheia a este interlúdio de paz e amizade.

A sensação de desconforto agravou-se com a repetida ausência de uma palavra para exaltar o papel da Constituinte na consolidação das liberdades. É uma omissão imperdoável. Se o MFA deu o impulso decisivo para a mudança, a Constituição de 1976 é, sem qualquer dúvida, o marco fundador da democracia de tipo ocidental com que sonharam os militares de Abril.

Sem a determinação dos Capitães de Abril, talvez a Revolução tivesse soçobrado; mas sem a resistência dos Constituintes, nos dias dramáticos do cerco à Assembleia, dificilmente a democracia teria saído vencedora da primeira prova de fogo a que foi sujeita.

À distância de mais de quarenta anos, não custa acreditar que as imagens da saída triunfal dos deputados comunistas do Parlamento – em contraste com os outros, que eram alvo de ameaças, injúrias e cuspidelas – foram decisivas para o país se dar conta de que existia mesmo uma ameaça totalitária.

Mas os deputados sitiados mostraram sempre aprumo e coragem. E assim, superada a prova, já foi mais fácil a Mário Soares, Sá Carneiro e Freitas do Amaral mobilizarem o povo que, como em 1385, ‘correu ao Paço’, desta vez para se juntar aos tanques de Jaime Neves rumo à Calçada da Ajuda para impor a derrota aos amotinados da Polícia Militar.

O cerco da Constituinte e a provocação do 25 de Novembro foram a face e o reverso de uma mesma realidade: um golpe traiçoeiro, urdido para inverter o rumo dos trabalhos parlamentares que iam no sentido da aprovação de uma Constituição própria de regimes livres. «Tão livres como a livre Inglaterra», mas desta vez a sério.

Se, em 74, bastara a Salgueiro Maia dar um safanão na árvore caduca para que o fruto caísse de maduro, já as vitórias de Novembro de 1975 foram mais arriscadas, porque se enfrentavam forças bem organizadas e com apoios não negligenciáveis, tanto no plano interno, nos quartéis e nos jornais, como no plano externo, com os ventos que sopravam de Leste. Felizmente, Lisboa ficava mais longe de Moscovo que Budapeste e Praga, fraternalmente invadidas pelos tanques soviéticos.

O Partido Comunista e seus vários apêndices averbaram então uma derrota estrondosa, só matizada pelas palavras apaziguadoras de Melo Antunes, na tentativa de manter a esquerda no jogo democrático.

Em 1974 e 75 o PCP estava longe de ser o partido que agora envia uns jovens de boas palavras aos debates televisivos; nesses anos, ‘o partido’ era guiado por um friso de homens de fato cinzento, mal-encarados o suficiente para que não transparecesse o menor sinal de disponibilidade para o diálogo. Um vício de quem só conhecia a imposição.

Rendido, o PCP aprovou uma Constituição que sempre quis inviabilizar. A pergunta que hoje tem de se colocar é se este deliberado silenciamento dos Constituintes não vem de cumplicidades antigas, dos que não querem que se saiba o lado em estiveram em 1975, e o que então fizeram, disseram e escreveram.

Filipe Pinhal, ex presidente do BCP