Fazer música é um ato de inteligência e bondade

Paulo de Carvalho entrou no clube dos septuagenários no dia 15, dia em que o primeiro exemplar de “Duetos” foi entregue com afeto ao Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa. Não é um álbum de família mas o sangue novo vem de dentro de casa. Ou talvez não, já que o mentor do projeto…

Fazer música é um ato de inteligência e bondade

Para si é Agir ou Bernardo?

É Bernardo. Agir é para quem está de fora. Não o quero só para mim, aliás nunca quis (ri). O que é facto é que às vezes é estranho. Se lhe chamo Agir é porque foi o nome que ele escolheu e é bom que o respeitemos. E também para não criar confusão. 

Quando não estão em casa?

Quase nunca estamos estamos juntos em casa. Ele não vive comigo há muitos anos. Às vezes, a família reúne-se.

Como é que se gere essa relação quando o Agir é o mentor deste projeto?

A parte mais importante foi ter-me sido proposto por alguém em quem confio de antemão. Não me fez perder muito tempo a pensar na confiança. Essa eu sei que está garantida. Sei minimamente como ele é. A ideia agradava-me porque ele no fundo queria contar, através das minhas cantigas, os 55 anos de percurso musical. Ainda por cima, com a vontade de juntar gente minha amiga e que também faz música. Não só os do tempo em que comecei, como os do tempo que vivi e aqueles do tempo que estou a viver – os mais novos. Ele proporcionou-me isso, só tinha que aceitar. Tivemos pequenas discordâncias – coisas sem importância – na forma de fazer. Ficou claro desde o início que o meu trabalho era cantar o mais próximo possível do que sempre cantei. Quem brilha são os convidados. Eles é que fazem o que lhes apetece. 

É uma proposta de trabalho com afetos.

Consigo ter afetos por todos os músicos. É um elogio. Consigo criar esses laços. A maioria são meus amigos além da música. Alguns até participam. Se há afetos entre todos? Claro! Há afetos entre mim e o Carlos do Carmo, o Ivan Lins…com todos. E começa a haver com gente que conheci agora. Tem sido uma vida de afetos.

Normalmente são os pais a empurrar os filhos. Neste caso, foi o inverso.

Também já o empurrei muitas vezes (ri-se). É evidente que tem um cunho especial sermos pai e filho mas não vejo as coisas por aí. É mais um companheiro de profissão que adquiriu saber suficiente para me lançar este desafio. E eu aceitei por isso mesmo, por ser uma boa proposta. Agora, há de facto afetos, mas eu já os tinha conseguido criar antes. Não vejo este álbum de forma «especial» por ser um filho meu. Se calhar, erradamente. Conhecemo-nos melhor? Se calhar, não.

Não?

Não. Nós já não vivemos juntos há muito tempo. Ele foi numa direção em que algumas vontades me passam ao lado. E vice-versa. Temos sempre que conversar e chegar à conclusão que, se um tem a ideia, o outro concretiza.

E o Paulo de Carvalho ficou a conhecê-lo melhor?

De certo modo. Fiquei a conhecer um músico com a sua forma de trabalhar. Muito persistente e que faz muito bem o que faz. Mas nada disto pára aqui. O nosso conhecimento vai continuar a fazer-se. Este disco trouxe-me um problema: «E agora Paulo?» É o disco de uma vida. E ainda ficaram uma série de cantores de fora. Ainda bem que foi o Agir a escolher.

O que é que pesou na escolha?

Aí está uma boa pergunta para eu lhe fazer. Ele sabe quem eram as pessoas essenciais. Volto a falar do Carlos do Carmo. Ele gravou um dueto para o “Lisboa Menina e Moça”, uma canção que eu fiz com o José Carlos Ary dos Santos. Faz todo o sentido. Foi uma pena não ter 50 canções. 

Destas canções o que é fica de um país?

Inevitavelmente, está aqui uma parte da história musical. A história social, nós é que passámos por ela. A música tem a capacidade de acordar pessoas mas contribuir para mudanças, não sei…Estou na história de Portugal por acaso porque o “E Depois do Adeus” foi escolhido para primeira senha dos Capitães de Abril mas eu não sabia. Foi uma feliz coincidência, porque concordo com o que se passou.

As ligações partidárias prejudicaram-no?

Estamos todos a aprender e eu limitei-me a seguir o caminho mais correto para o que pretendia. Fiz as minhas escolhas, provavelmente teria feito as coisas de outra forma mas não me arrependo. Não tenho culpa que as pessoas passem pelos assuntos a correr e, às vezes, com intuitos maldosos. Ainda hoje se diz que fiz o hino do PSD quando eu fiz o hino do PPD, o que é diferente. O partido mudou de nome, eu não mudei de intenções. Neste momento, não estou ligado a nenhum partido e continuo a ser a mesma pessoa.

Passou por fases em que se sentiu menos reconhecido?

Menos reconhecido, não, porque o público mostra sempre a sua gratidão. Agora, há gente com algum poder que me fez a vida negra por não estar perto das ideias dominantes. Dos dois lados. Agora está melhor? Está, são 43 anos de aprendizagem. Viver, como fazer música, é um ato de inteligência mas também é um ato de bondade. Não sou invejoso, nem quero mal a ninguém. 

Este álbum pode conquistar novos públicos?

É uma das partes boas. Acho que sim. Agradeço ao produtor (ri-se). Primeiro, chamar a atenção de gente mais velha que me encontra na rua e pergunta: «Você ainda canta?». E chegar a gente mais nova. 

Que memórias guarda do início nos Sheiks?

A luta. Eu cheguei aqui sem saber muito bem como. Nada foi programado. As coisas foram acontecendo. Se tiver que fazer um balanço, é muito positivo.

Revê-se na juventude do Agir?

Comecei com 15 anos, e tínhamos muita dificuldade em aprender. Não havia vídeos como hoje. Se gosto de um baterista, vou ver ao YouTube como é que ele toca. Nós tirávamos os acordes da guitarra a ouvir os discos. Os tempos são diferentes. Penso que fiz bem o que fiz naquela altura e acho que isso passou um pouco para o Bernardo e para os irmãos mais próximos da música. Não sou nada de dar conselhos ou de obrigar a fazer. Sou mais de mostrar o que faço. 

No gene ficou a rebeldia?

De certeza. Fisicamente tenho 70 anos mas mentalmente não. Se hoje apareço vestido de forma mais conservadora é porque o plano de promoção assim o indica. 

Abrir portas para os outros é uma gratificação?

Faço isso muitas vezes. Quando nos veem, é numa televisão ou a dar uma entrevista. Depois há uma retaguarda de ir a escolas falar com os mais novos, contribuições solidárias…É uma obrigação. É bom que não nos esqueçamos de que vivemos com os outros.

O mediatismo perdeu o sentido altruísta?

Penso que sim. Dantes, trabalhávamos para ser conhecidos. Agora temos que ser conhecidos para trabalhar. Falseia as regras do jogo. 

É a sociedade do espetáculo?

A todos os níveis. Quem não aparece, não existe. Por exemplo, agora nós estamos a falar da minha relação com o Agir mas lá em casa há mais filhos. E eu tenho cinco. Quando a Mafalda [Saccheti, cantora que também participa em “Duetos”] gravou o primeiro disco, era dela de quem se falava mas quem não aparece, esquece. É evidente que há um trabalho musical importante e um motivo fortíssimo para falar sobre a relação com o Agir. Isso podia interessar mais a quem vai ler, os afetos e as emoções, mas o que importa é o «gajo conhecido». 

O tempo relativiza a relação com o exterior?

Eu sempre fui uma pessoa de família. Apesar de ter casado cinco vezes. A maioria das pessoas pode pensar que sou um fulano execrável. Mas não, só defendo que as relações devem estar vivas enquanto duram. A retaguarda é fundamental. É o primeiro apoio. 

A curiosidade alheia é o lado aborrecido da fama?

Não tenho problemas desses. Talvez porque sempre me dei ao respeito. Neste momento, tenho todo o interesse em dar a conhecer o meu trabalho. Isto é um jogo, para divulgar o que faço tenho que me dar a conhecer a mim. O que nunca fiz foi convidar alguém a vir fotografar a minha casa. 

Estes «duetos» têm um lado de álbum de família?

É um álbum da família da música.

Depois de ter interpretado tantas vezes estas canções, conseguiu surpreender-se com as novas versões?

De um modo geral. Eu como cantor e o Agir como produtor propiciámo-lo. Há muita história aqui. Quando canto a “Nini dos 15 anos” com o José Cid, uma canção que até podia ser dele, faz todo o sentido e brincamos um com o outro. Quando canto o “Olá, então como vais” com o Tozé Brito, que ele escreveu para mim em 79, há ali grande cumplicidade. Mas depois também há essa cumplicidade com a Marisa Liz no “E Depois do Adeus”, com a Rita Guerra…O Rui Veloso canta uma cantiga dos anos 80 que é o “Dez Anos”. Ele já não se lembrava que a guitarra do disco original foi gravada por ele. 

Identifica-se com a música que se vai fazendo em Portugal?

Acho que se canta maravilhosamente bem em Portugal mas o problema dos mais novos é o problema dos mais velhos. A dificuldade de divulgação. Se eu ajudei? Forçosamente. Escrevendo para os mais novos, ajudando, trabalhando quando me pedem. Mas não sou só eu. A música é para fazer em conjunto. Há algum tempo, houve muita malta a trabalhar em casa só com o computador mas essas pessoas chegaram à conclusão de que têm que trabalhar com os outros. Uma coisa é a música que sai em computador, outra é tocar aquilo. O Agir é um exemplo: quis fazer arranjos para violinos, metais e tem-lhe dado prazer. Ficou-lhe o bichinho.

Como é que observa o fenómeno Salvador Sobral [a entrevista ocorreu antes da final da Eurovisão]?

Não vi o Festival nem me interessa ver mas tenho a noção, por já termos estado juntos em situações em que ninguém está a olhar – quando não é preciso vender nada a ninguém – de que é um grande músico. E parece-me ser uma enorme pessoa, que é a parte mais importante. Quanto ao fenómeno, que ele tire partido, que seja bom para ele, e não ligue muito a festivais. É uma pessoa muito bonita e canta muito bem. 

O que é se guarda primeiro, a música ou as pessoas?

A música leva às pessoas. A música faz-se por causa das pessoas. Há períodos em que nos tornamos egoístas e achamos que a música só se faz por nossa causa. Só faz sentido se provocar sentimentos nas pessoas.