Alípio de Freitas. ‘Não me importa que me matem. Outros amigos virão’

Foi primeiro padre, depois guerrilheiro. Esteve na fundação do Bloco. Desapareceu ontem aos 88 anos.

“Diz Alípio à nossa gente: Quero que saibam aí/ Que no Brasil já morreram/ Na tortura mais de mil/ Ao lado dos explorados/ No combate à opressão/ Não me importa que me matem/ Outros amigos virão”. Imortalizado na canção por Zeca Afonso, e com uma vida de luta socialista e antifascista cheia de sobressaltos, Alípio de Freitas morreu ontem aos 88 anos, em Lisboa. Foi primeiro padre, depois guerrilheiro e, no meio de tudo, jornalista. No Brasil promoveu o movimento camponês e em Portugal viria a ser um dos fundadores do Bloco de Esquerda, em 1999.

Nascido em Vinhais, Bragança, contou numa entrevista ao “SOL”, em 2009, que quando decidiu entrar para o seminário não foi por vocação, mas para poder estudar. “Não sabia bem o que queria, mas sabia o que não queria: não queria aprender sapateiro, serralheiro, ainda que gostasse dessas coisas.”

Tinha 11 anos e estavam lançadas as cartas. Aos 18 anos, quando teve de decidir se ia mesmo para padre, esteve para fugir para França, mas acabou por desistir quando um dos companheiros recuou nos planos. Dedicou-se então a estudar Teologia e começou a ler livros proibidos pela Igreja, de autores como Espinosa e Campanella. “Desacreditei da autoridade da Igreja. Continuei a acreditar em Deus, muito vagamente”, confessava nesta entrevista.

Acabaria por ser ordenado padre não muito depois, aos 23 anos. Primeiro ficou responsável por uma escola de artes e ofícios em Bragança e depois foi colocado numa paróquia pobre da Serra de Montesinho, Rio de Onor. Foi ali que se “fez camponês”, luta que viria a abraçar anos mais tarde junto da população carenciada do Brasil.

A convite do arcebispo do Maranhão, cruzou o Atlântico em 1957. Chegado ao Brasil, à cidade de São Luís, foi professor de História Antiga e de História Medieval da Filosofia e começou a pastoral em bairros pobres. Leitor às escondidas do “Avante” desde a adolescência, surpreendeu-se com a liberdade de imprensa e de associação. “Todo o mundo sabia quem eram os comunistas da cidade. (…) Não era quem estava no poder que tinha sempre razão – isso em Portugal seria impensável. É por isto que tenho gratidão por ter ido para o Brasil: foi lá que os meus olhos se abriram”.

Começou a ser chamado a sindicatos, para intermediar conflitos. Em 1958, foi convidado por um homem que organizava associações de camponeses para os ajudar e começou a nova fase da sua vida, ao mesmo tempo que furava as regras eclesiásticas ao começar a dar missa em português. “Se Deus é sábio, percebe português. Se só entende latim, está mal”, explicou ao arcebispo, lembrou na entrevista de vida ao “SOL”, publicada ao longo de várias edições. No Natal de 1961, depois de celebrar a missa do galo com uma imagem de um menino de Jesus preto, acabou por ser afastado da paróquia.

Nesta altura, Alípio de Freitas já tinha chamado a atenção da PIDE por críticas a Salazar em textos publicados em Brasil. Afastado da paróquia e terminadas as aulas na faculdade, viaja para Moscovo, onde conhece Krushchev, secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética. “Nunca um padre ocidental tinha visitado Moscovo depois da tomada do poder pelos bolcheviques”, lembrou em 2009. De regresso, decide afastar-se da vida religiosa e envolve-se na campanha política de Miguel Arrais para o estado de Pernambuco. Foi sequestrado durante a campanha e esteve detido 40 dias. Viria a ser de novo preso por falar contra o exército e instituições, na antecâmara da ditadura militar do Brasil. Com o golpe que depôs João Goulart, pediu asilo no México e de lá seguiu para Cuba, para fazer treino político e militar, com o intuito de voltar ao Brasil e derrubar a ditadura.

Regressou na clandestinidade ao Brasil, em 1966, e tornou-se dirigente do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Esteve preso pelo regime militar nove anos. Depois de uma passagem por Moçambique, regressa a Portugal nos anos 80, onde começa a trabalhar na RTP, sempre com participação cívica. Deixa uma filha do casamento com Wanda Cozetti Marinho, a cantora Luanda Cozetti. O funeral realiza-se hoje, pelas 12h, em Alvito, no Alentejo, a sua terra adotiva.