As torres também ardem

Vi no Telejornal as imagens de uma torre de 24 andares tomada pelo fogo no centro de Londres, como se fosse uma pilha de lenha a arder.

Perante a força das imagens, senti o fascínio da espécie pelo fogo, quer pela segurança que transmite quer pelo carácter espectacular do acto de arder.

Entendo o sucesso da cadeia televisiva americana que vende imagens de fogo, permitindo a cada um gozar em casa um serão tranquilo.

Depois tive um baque de descrédito, de reacção à banalização mediática do horror e da catástrofe do real que conhecemos através do Telejornal.

Seguiram-se as emoções, numa espécie de êxtase profissional, cujas razões decorrem de ter desenvolvido no meu ateliê de arquitectura projectos idênticos, pelo que estava a interpretar cada imagem como se a torre fosse uma das ‘minhas’ e a tentar perceber cada colapso face aos sistemas regulamentares de protecção contra incêndio em edifícios de grande altura, de aplicação obrigatória no espaço da União Europeia – e que, por razões que eu não entendia, não estavam a funcionar ou então não eram eficazes.

E assim ocorreram-me duas ordens de reflexões, uma na orla do ofício e outra na do ensino.

Na dimensão do ofício, interrogo-me sobre se não estaremos a pagar a factura pelo facto de desenvolvermos os trabalhos numa ‘base virtual’, com sucessivo e constante apagamento do real.

Será que o fogo na torre de Londres é um facto isolado ou poderá multiplicar-se se não lhe dermos a necessária atenção e não fizermos esforço para retomar a base experimental e de ensaio físico que interrompemos com a febre da informática e do virtual?

A dúvida que pretendo levantar consiste em saber se o abuso de meios informáticos para ensaio de modelos em ambiente virtual, em detrimento de meios físicos experimentais em ambiente real, terá ou não consequências. E se não deveríamos reflectir e ponderar calmamente, antes de se deitar para o caixote do lixo todo o património experimental que nos conduziu até aqui.

Será que, perdida a competência edificatória pela espécie, a experiência é a matriz determinante do saber acumulado – ou será que se inicia um novo ciclo, em que a imagem terá forças e capacidades para a substituir?

Tenha-se em conta o que se passou com o prestigiado LNEC, que o aparelho político burocrático do Estado esvaziou da sua capacidade operacional sob a falsa ideia de que, com os computadores, já não é necessário ter operários para executar modelos e investigadores para realizar ensaios.

Outra ordem de questões decorre da experiência docente numa escola de arquitectos, no caso a Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, onde existe a licenciatura em Arquitectura de Interiores que deverá formar arquitectos com formação técnica adequada.

Estes arquitectos, pela sua formação académica, podem saber mais de segurança, de luminotecnia, de redes de fluidos ou de ar condicionado – colaborando mais intensamente naquilo a que chamo ‘projecto oculto’, ou seja, aquilo que existe num edifício mas está escondido, não se vê.

Aprecio a metáfora que compara o trabalho do arquitecto, coordenador de uma vasta equipa de projecto, ao do realizador de cinema, no sentido em que ambos têm de ter ‘luzes’ numa vasta cultura de saberes especializados sem serem especialistas em nenhum deles.

A câmara exige o operador, a imagem o fotógrafo, a representação o actor, o cenário o cenógrafo e assim por diante, pessoas que dominam toda a técnica de cada parte. Ao realizador, como ao arquitecto, exige-se que saiba de cada uma das partes apenas o necessário para compor o todo.

Assim é – e assim será enquanto existir esta divisão do trabalho. Mas a complexidade de alguns projectos, tal como a de alguns filmes, exige o trabalho de assistentes de realização. É necessário e urgente pensar melhor na sua formação, pois eles serão os realizadores do futuro.

As torres não ardem por acaso. E cada vez mais é preciso saber porque ardem e como ardem.

Fernando Bagulha