Fogo. O último predador do homem

Sobre a aliança e o braço-de-ferro entre o homem e o fogo, vários autores se debruçaram, havendo um fascínio por este elemento que por vezes se solta e age como um deus terrível

Não há outro elemento que tão vivamente como o fogo guarde a memória das antigas calamidades, do tempo em que o perigo cercava o homem de todos os lados e em que este sabia estar à mercê dos humores da natureza. Não há outro elemento em que seja tão estreita a relação que estabelecemos com ele e como daí despontou a civilização. Durante cerca de um milhão de anos, o fogo foi decisivo para a sobrevivência das comunidades. Além de toda uma era lhe ser dedicada, é crucial o momento em que, ao apropriar-se dele como uma tecnologia, o homem começou a desenhar uma fronteira entre si e o resto da natureza, num ascendente que rapidamente abriu o caminho para dominar as circunstâncias em seu redor.

Por outro lado, e para lá da servidão a que o fogo se presta, há a atração que desde a infância produz um estranho fascínio face ao seu poder, ao modo como numa chama dançando parece esconder-se uma ameaça, a semente de um imenso poder destrutivo, num elemento que parece responder a uma vontade com a sua fome insaciável, o seu génio avassalador.

Qualquer especialista no combate aos fogos dirá que, caso estejam reunidas condições propícias, se um fogo tiver diante de si tudo aquilo de que precisa para crescer, irá adotar o ânimo de um exército, dividindo-se em várias frentes, usando o vento, virando o jogo a seu favor. Nessas alturas, o homem, com todos os seus conhecimentos e tecnologias, volta a ser lançado numa posição de imensa fragilidade, e é então que o amo do fogo se vê na posição de presa.

Ao longo dos séculos, do ponto de vista cultural, o fogo acabou por traduzir-se não apenas numa ferramenta do homem, mas numa espécie de metáfora nuclear da forma como encara o mundo, e talvez nenhum outro pensador tenha ido tão longe na compreensão desta dinâmica como Gaston Bachelard no livro “A Psicanálise do Fogo”. Como refere nesta obra, há um balanço entre a vida e o fogo, uma tensão entre dois modos de ação carregados de um simbolismo emocional: “Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente explica-se pelo fogo. O fogo é o ultravivo. […] Sobe das profundezas da substância e oferece-se como uma paixão. Torna a descer à matéria e oculta-se, latente, contido como o ódio e a vingança. De entre todos os fenómenos, é realmente o único capaz de receber as duas valorizações contrárias: o bem e o mal. Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno.”

“Um deus tutelar e terrível” O fogo aparece assim como uma chave decisiva para a própria compreensão da forma como encaramos o mundo, sendo essa imagem que, pela variedade dos graus de intensidade que nos ensina, se nos tornou tão íntima que Bachelard diz que o fogo vive no próprio coração do homem. “É um deus tutelar e terrível, bom e mau. Pode contradizer-se, por isso é um dos princípios de explicação universal.”

A própria linguagem que usamos, o nosso vocabulário e imaginário, das frases mais banais às mais inspiradas, não abdicam do fogo seja como metáfora, seja meramente como unidade de medida das sensações próprias da natureza humana. Do fogo eterno que lavra no inferno, fogo como elemento purificador, à sensação de fogo nas entranhas, passando pelo coração ardoroso e o fogo dos amantes… Seria exaustivo tentar capturar todo o catálogo de declinações do fogo.

Entre os elementos naturais, não há outro que nos sirva tão fielmente de espelho. E é por isso natural a reserva de temor que acompanha o fascínio pelo fogo. A atestá-lo estão os milhares de casos registados anualmente em que crianças morrem devido a brincadeiras com fogo. E já foi correlacionada a atração que as crianças desenvolvem face a este elemento, e aos materiais que são combustíveis, com a curiosidade que manifestam face aos predadores e a animais perigosos, aqueles que podem causar-lhes dano e significar um risco para as suas vidas.

São inúmeros os exemplos de como a cultura reflete a relação entre o homem e o fogo e, na nossa língua, um dos mais expressivos exemplos de como continuamos a receber deste elemento lições sobre o lado espetacular das coisas é o poema do brasileiro João Cabral de Melo Neto, “O fogo no canavial”: “A imagem mais viva do inferno./ Eis o fogo em todos seus vícios:/ eis a ópera, o ódio, o energúmeno,/ a voz rouca de fera em cio.// E contagioso, como outrora/ foi, e hoje, não é mais, o inferno:/ ele se catapulta, exporta,/ em brulotes de curso aéreo,// em petardos que se disparam/ sem pontaria, intransitivos;/ mas que queimada a palha dormem,/ bêbados, curtindo seu litro.// (O inferno foi fogo de vista,/ ou de palha, queimou as saias:/ deixou nua a perna da cana,/ despiu-a, mas sem deflorá-la.)”

Há uma aliança não apenas física mas igualmente metafísica nesta relação. Não somos simplesmente capazes de nos expressar sem que o fogo ou as suas manifestações se interponham entre nós e as palavras, entre nós e as emoções que nos governam. Tal como o homem, o fogo sente a vertigem do excesso e o desequilíbrio nele tende a provocar o caos, e, por isso, perante o fogo, ou nos calamos ou somos obrigados a ultrapassar o estado de maravilhamento e terror, acabando a falar poeticamente.

Agora que Portugal parece uma vez mais ver no verão a mais ameaçadora das estações, aquela que mais lhe atinge o pulmão, a área verde, a riqueza das suas florestas, com um desastre de proporções que estão ainda por ser contidas pela imaginação, os relatos que chegam da destruição provocada pelo fogo são exemplos de assoberbamento, perplexos perante um elemento que age de forma tão imprevisível quanto impiedosa. Não somos capazes de explicar senão segundo uma escala tão humana um comportamento tão virulento e implacável.

E porque a arte, a poesia não procura apenas um consolo mas se propõe também salvar-nos da inexpressão quando estamos perante um inimigo que, devido à nossa familiaridade com ele, nestas horas nos atinge mais pela sua “atitude traiçoeira”, lembramos alguns exemplos de filmes ou livros em que o fogo mostra o rosto de um deus anterior às branduras do Novo Testamento. Um deus que, de tempos a tempos, parece reclamar sacrifícios, numa manifestação de ira da natureza que subjugámos tão completa e desrespeitosamente que estamos hoje à beira de uma imensa catástrofe natural.

O fogo pode assim ser reconduzido no papel daquele que nos avisa, um emissário que, a intervalos mais ou menos regulares, nos vem lembrar que, com toda a grandeza do espírito e da técnica da nossa civilização, não deixámos de pertencer à natureza, que pode, a qualquer momento, virar para nós a sua face vingativa. Quando dezenas de pessoas morrem pelo fogo, a reflexão e o luto obrigam-nos não apenas a assumir responsabilidade como – e, talvez, sobretudo – a assumir a nossa impotência. Entender que a maior das nossas fraquezas pode passar pela prepotência que nos levou a esquecer que a relação de forças pode alterar-se subitamente, e voltarmos a ter diante de nós uma catástrofe com o ânimo de um predador.