Como era a Volta a Portugal há 60 anos

Vai hoje para a estrada a 74.ª edição da prova rainha do ciclismo nacional, Alves Barbosa e Joaquim Gomes, antigos vencedores, recordam como tudo mudou. Já ninguém come bolos de arroz.

a volta a portugal em bicicleta, que arranca hoje para a 74.ª edição, é das provas por etapas mais antigas do mundo. a primeira correu-se em 1927 e não é de admirar que antigos ciclistas encontrem grandes diferenças para os dias de hoje.

alves barbosa, o primeiro a vencer a corrida por três vezes, nos anos 50, ainda se chateia só de pensar nos bolos de arroz que lhe davam para comer durante as etapas: «pareciam areia».

foi só mais tarde, quando participou na volta a frança, que percebeu a razão de ter de engolir aquela suposta fonte de energia. «cheguei lá e deram-me uma espécie de arroz doce no forno que era maravilhoso. chamava-se gâteau de riz e pensei: aqueles parolos traduziram à letra e dão-me bolo de arroz».

vestidos de lã

hoje, enquanto pedalam, os ciclistas alimentam-se de concentrados protéicos e barras e bebidas energéticas, uma dieta bem mais sofisticada. joaquim gomes, actual director da volta e bicampeão da prova (1989 e 1993), ainda apanhou os hábitos antigos: «comíamos ameixas secas, bananas, cubos de marmelada e açúcar e bebíamos água».

a escolha do ‘menu’ reflectia-se no peso que se perdia. «hoje um atleta perde dois quilos por etapa, mas são facilmente repostos porque tem a ver com a hidratação. no passado, quem não tivesse boa capacidade de recuperação, podia acabar o dia com menos cinco ou seis quilos», explica joaquim gomes.

mas não foi só a ementa que mudou. se agora os equipamentos são uma mais-valia, nos anos 50 eram um obstáculo. a roupa era de lã e o corpo aquecia. «até as bananas apodreciam nos bolsos», recorda alves barbosa, mais de meio século depois.

também as bicicletas tornavam o ciclismo um desporto mais duro, como admite joaquim gomes: «pesavam 10 quilos e agora sete ou seis e meio. e se antigamente havia dez mudanças, hoje são mais de vinte». o que facilita a pedalada e permite velocidades muito superiores.

as estradas que hoje são todas alcatroadas – a não ser «quando estão em obras», como graceja o actual director da volta – eram outra dificuldade adicional que os ciclistas tinham de ultrapassar. os troços de empedrado e de terra batida eram o prato do dia.

«a trepidação era tanta que ficávamos dormentes e sem reacção», diz joaquim gomes sobre os primeiros. os segundos transportam os 81 anos alves barbosa a uma etapa entre santiago do cacém e faro. «sabia que ia haver muito pó e quis adiantar-me, mas quando já estava na frente tive um furo. o carro de apoio, com a pressa de me ajudar, ultrapassou-me e eu não o vi a tempo de travar e embati na traseira do carro».

o pior ainda estava para vir. o pai de alves barbosa seguia no veículo e saiu apressadamente para ajudar o filho. com tanta poeira no ar, caiu numa ribanceira com a roda suplente na mão.

joaquim gomes, que durante a sua carreira veio a beneficiar das principais evoluções do ciclismo, admite que neste momento o trabalho do ciclista está mais facilitado: «de furar a mudar uma roda, se tudo correr bem, demora dez segundos».

adeptos roubaram vitória

mas nas suas primeiras pedaladas, nos anos 80, ainda não existiam rádios intercomunicadores e tinha de se contar mais vezes com a ajuda dos companheiros de equipa, ou para emprestarem uma roda ou a própria bicicleta. o problema é que não havia o espírito colectivo de hoje. prevalecia a máxima: «primeiro eliminam-se os adversários e depois os membros da equipa».

quem também tirava o sono aos atletas eram os adeptos mais fervorosos. alves barbosa foi protagonista de um dos episódios mais caricatos da volta, quando, na última etapa e de camisola amarela vestida, foi travado por adeptos do fc porto. retiraram-lhe uma roda da bicicleta, agrediram-no e impediram o ciclista do sangalhos de ganhar a corrida. com esta gravidade, foi caso único. a volta está diferente.

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