Rodrigo Guedes de Carvalho. Instrumentos para a melancolia

Dez anos depois do último romance, Rodrigo Guedes de Carvalho volta a responder ao apelo da literatura com “O Pianista de Hotel”, um romance admirável de intensidade sóbria, precisa e frequente que encontra na melancolia o seu timbre condutor

É o quinto livro do jornalista e escritor, publicado uma década depois de “Canário”. O longo hiato indicia, desde logo, um modo de estar na literatura, avesso a frenesins criativos, a anuais correrias pelos altos postos nas tabelas de vendas e a visões de superfície que fazem dela mais um produto de uma cultura tendencialmente pobre. Traz no título a figura, difusa e misteriosa, que tanto mais nos foge quanto mais importaria alcançá-la. O pianista é, a um tempo, um lugar de chegada e de partida.

Se é daqueles leitores que prefere as linhas sossegadamente horizontais ao esforço vertical, se aprecia histórias de emoções inequívocas narradas num contínuo convencional, sem desvios ou recuos – esse incómodo, para alguns intolerável, por impedir que ajustemos a anatomia à cadeira –, se é, ainda, um perdido por figuras de papel recortado à procura de um final feliz, ponha de lado “O Pianista de Hotel”. O teclado de Rodrigo Guedes de Carvalho, que vai dos ímpetos de agressividade à ternura escura, tocante, nunca amacia arestas. Como Cesário Verde, ama “os ácidos, os gumes. E os ângulos agudos”, nunca trocados pelos lugares acolchoados que encontramos atualmente na nossa ficção. A escrita, límpida, fluida, viva e incisiva, plástica, adapta-se camaleonicamente à natureza dos lances narrativos, mais dramáticos ou mais líricos, de humor mais ou menos áspero.

Situado nos antípodas de uma certa ligeireza que leva alguns autores a publicarem quase tudo quanto escrevem, este novo livro de Rodrigo Guedes de Carvalho, revelado nos idos de 1992 com o romance “Daqui a Nada”, instala-nos em zonas escarpadas, de desamparo, que nos mostram a distância que vai do mundo explicado em linha reta à vida, passada “a tentar aguentar o balanço de tanta curva e contracurva.”

Os núcleos narrativos que compõem a trama de planos sobrepostos organizam–se como se se tratasse de uma peça musical, como bem viu Helena Vasconcelos: tema, refrão, ritmo, pausa, silêncio cumulativo e irradiante de mistério, contrapontos, modulações… Estas histórias cruzadas decorrem numa cidade grande, buliçosa, árida, socialmente hostil, situada no coração daquela zona crepuscular que reflete sobre a dolorosa existência do homem, nas suas múltiplas dimensões. Melancolicamente escurecida pelas figuras da perda e da ausência, não recusaria um letreiro luminoso que a ideia de felicidade, sempre gorada/despedaçada, faria acender, por instantes. Essa cidade, onde imperam formas de violência, transformada na matéria dos dias, não é uma mera abstração indicativa para fins de localização de seres e ações. É um território concreto, bem mobilado, detalhadamente recheado, um espaço vivido onde nem sempre respirar é um verbo fácil. Há o quarto – essa forma geométrica da solidão onde a respiração, por vezes, se torna pesada –, os apartamentos e outros lugares claustrofóbicos, como o hospital ou os bares, essas gavetas onde o mundo se dobra sobre si próprio e há um fosso de mal-entendidos entre o que se diz, o que se ouve e o que esteve quase para ser dito, porque, às vezes, há coisas que melhor se dizem calando.

A música começa a soar por ausência. No primeiro capítulo, a estridência e a dissonância são quem mais ordena; o ruído urbano, espécie de contraponto, arranha–nos os tímpanos: são os roncos do camião do lixo, autocarros que aceleram e travam bruscamente num “tropel de manada”, estrondos de algazarra, fúrias maldispostas, “um vulcão de motores, buzinas, conversas, carros com o rádio no volume máximo”.

Os protagonistas deste romance – Maria Luísa, Luís Gustavo, Saul Samuel e o cirurgião Pedro Gouveia – são figuras incompreendidas, solitárias, com os seus traumas, arrastados no tempo. Sabem bem que as coisas pretéritas não são um mais–que-perfeito, um lá longe. Perdidas de si mesmas, empreendem uma busca ansiosa que chega a ser delirante. Formam um quarteto entristecido de personagens bem desenhadas cuja vida é orquestrada pela Memória, espécie de personagem tentacular a insinuar-se nas situações mais variadas e a ditar as suas leis. O passado, convertido num revenant sempre pronto a assombrar, torna-se terrivelmente visível, revisitável.

Algumas vivem vidas por defeito. Maria Luísa, que cedo experimenta o trago amargo da vida, viu-se impedida de prosseguir os estudos. Serve às mesas, num restaurante. Saul Samuel vive insatisfeito com a sua existência de bailarino numa discoteca. O enfermeiro Luís Gustavo poderia ter sido médico, mas leva os dias a percorrer o corredor comprido do hospital, de quarto em quarto, de cama em cama, onde se deitam a convalescença e a doença e a morte se levanta. Pedro Gouveia está desavindo com a medicina. Neste sentido, “O Pianista de Hotel” é também uma autópsia dos sonhos desfeitos. Não por acaso, a escrita adquire, por vezes, a dureza de uma tábua de anatomia. A própria mãe de Maria Luísa, “segunda secretária de um subsecretário de estado”, teve sonhos de grandeza. Sem elixires que perpetuassem a eterna juventude, sem espelho que lhe devolva a sua imagem apaziguada de mulher a envelhecer, “apostou tudo no corpo”. E perdeu. O seu corpo morto, monstruoso, inspira à tia de Maria Luísa, velha sempre disposta a ferir, observações cruéis: “Acho que ela ia gostar de se ver ao espelho agora.”

“A decifração de uma vida passa por um corpo”, escreve Joaquim Manuel Magalhães. Dá-lhe razão este livro, onde o corpo chega sempre primeiro.

Sem efeitos fáceis nem retóricas manhosas, “O Pianista de Hotel” é um romance de vários (re)começos ou, talvez melhor, de vários limiares, zonas contíguas, comunicantes, que convém atravessar na companhia das palavras da primeira epígrafe, tomada a Shakespeare: “O homem que não é sensível à música,/ Que não se comove com a harmonia dos doces sons,/ Nasceu para as traições, os ardis, os roubos;/ Os movimentos do seu espírito são surdos como a noite.”

“Antes do início” é o primeiro começo e vem desarrumar, como quem brinca, um universo de ideias feitas: “Abriu o livro [o leitor] e procurou a primeira frase. Sempre ouviu dizer que o arranque de um livro é muito importante, porque se percebe logo o que podemos esperar.” Não é apenas uma nota faceta. Este começo antes do “começo” funciona como modo de perturbação de saberes e lugares-comuns, é um lugar de resistência em nome de uma ideia de literatura que nos desarruma, que investe língua adentro, que experimenta a provocação e o coloquial, que pensa cada aspeto do não. Que nos faz recolher instrumentos, ora “desalinhados numa trágica cacofonia de abandono, ora em harmonias breves que denunciam o tormento que é viver”. Enfim, um romance que faz pensar na velha fórmula segundo a qual “todos os romances felizes se parecem. Os infelizes, não”.

Associá-lo à literatura ligeira é fácil. Difícil é escutar a música densa que dele se desprende.