Óbito. Portugal perdeu o pessimismo carinhoso de Medina Carreira

Morreu ontem aos 86 anos, depois de doença prolongada, um dos homens que dedicou a vida ao estudo, ao trabalho e ao país

Aos 86 anos, morreu ontem Medina Carreira, vítima de doença prolongada. Nascido a 14 de dezembro de 1931, em Bissau, capital da Guiné, foi advogado e consultor fiscal, tendo passado pelo governo duas vezes antes de se tornar uma personalidde conhecida do grande público pelos seus comentários televisivos.

Passou pelo governo duas vezes, primeiro como subsecretário de Estado do Orçamento entre 1975 e 1976 no sexto governo provisória liderado por Pinheiro de Azevedo e depois ministro das Finanças do primeiro governo constitucional de Mário Soares, em entre julho de 1976 e janeiro de 1978.

“O governo foi talvez o sítio em que conheci gente mais sofisticada e mais hipócrita. As pessoas raramente dizem o que pensam”, diria muitos anos depois.

Conhecido por falar sem rodeios, chegou a admitir pensar no silêncio, já que a “piolheira política em que vivemos” fazia com que ponderasse calar-se de vez. Mas isso não aconteceu. Medina Carreira manteve a sua voz, tantas vezes descrita como fatalista e pessimista, em tom assertivo, sem papas na língua, até que o tempo falou mais alto.

Em maio deste ano teve ainda tempo para contar ao i ter dedicado a vida aos estudos e ao trabalho. “Eu trabalhei no Barreiro, na Marinha Grande, em Lisboa. Trabalhava numa fábrica, não nasci advogado. Estudei durante 22 anos, tirei vários cursos, uns a seguir aos outros. Trabalhava e estudava, tirei o liceu em três anos, e para fazer os exames no Camões tive de tirar férias, só para fazer exames”, relatou com orgulho.

O seu percurso académico começou na escola militar onde foi aluno interno durante nove anos. “A minha vida não é uma vida que sirva para comparar com nada. O dia tinha de dar para tudo, começava a estudar às cinco da manhã, depois ia para a fábrica às oito, saía da fábrica às seis, tomava banho e ia para os explicadores”.

Depois da engenharia e da vida fabril no barreiro, já em Lisboa ingressou no curso de Direito. “Durante os três anos de Direito não trabalhava, nos dois anos finais do curso de Direito já trabalhava outra vez com o curso de Engenharia. Depois, em 1962, comecei a trabalhar como advogado. Foi um salto. Ainda frequentei o curso de Economia enquanto trabalhava como advogado, mas nunca cheguei a acabar”, revelou Medina Carreira, que foi pelas suas opiniões sobre a economia do país que se notabilizou.

“Estudei 22 anos, mais cinco ou seis anos que os estudantes normais e sempre a trabalhar. Ainda continuo a trabalhar, nunca deixei de trabalhar nem faço intenção de deixar. A minha vida de estudante e trabalhador não é uma vida modelo, é mais difícil de perceber, era um caso anormal”, confessava ao i.

Publicou vários livros, o último dos quais em 2012, “Olhos nos olhos: uma reflexão abrangente, realista e construtiva sobre o futuro dos portugueses”, escrito em parceria com Judite de Sousa, com quem começou por fazer o programa televisivo “Olhos nos Olhos”.

assustar

Medina Carreira sempre gostou de assustar aqueles que o abordavam pela primeira vez, com uma antipatia que forçava, método usado como instrumento de “seleção natural”, como referia. Mas não quer isto dizer que não gostasse de ser abordado na rua pelas pessoas anónimas que o viam na televisão. Em entrevista ao “Expresso”, em 2009, afirmava que gostava que o povo o interpelasse na rua, a única gente que lhe interessava e para quem falava diretamente.

Chamavam-lhe exagerado, demasiado pessimista, cataclísmico até na sua visão do país, mas ele tinha uma frase que definia o país ao mesmo tempo que a sua perspetiva dele: “Nunca pensei que o país se transformasse num manicómio”.

“Não sou pessimista. Chamam-me assim porque, para me responderem, tinham de ir trabalhar, estudar os números, raciocinar”, afirmva na referida entrevista ao “Expresso”. “Limitam-se a chamarem-me pessimista e dão repercussão a essa ideia. É a coisa mais estúpida deste mundo e é a fórmula cómoda de tentar anular o meu pensamento”,

“O governo foi talvez o sítio em que conheci gente mais sofisticada e mais hipócrita. As pessoas raramente dizem o que pensam”