«Vozes de burro não chegam ao céu»

Este grafito, em Setúbal, é bastante curioso por decorar, com vários desenhos, as paredes de um restaurante / bar, e dar destaque a um provérbio, caracteristicamente em linguagem popular, cujo significado é que as opiniões pouco inteligentes não soam muito alto e não têm consequências. O urrar dos burros é mais baixo do que, por…

Este grafito, em Setúbal, é bastante curioso por decorar, com vários desenhos, as paredes de um restaurante / bar, e dar destaque a um provérbio, caracteristicamente em linguagem popular, cujo significado é que as opiniões pouco inteligentes não soam muito alto e não têm consequências. O urrar dos burros é mais baixo do que, por exemplo, o uivar de um lobo; é um som com menor projeção do ponto de vista acústico. Além disso, o próprio animal e toda a simbologia que lhe está associada tornam o «burro» mais adequado a um provérbio assim.

E, se as «vozes de burro não chegam ao céu», então quais chegarão? Quais serão as vozes autorizadas a comunicar com o céu? Quem será ouvido no céu? – Estas são dúvidas que parecem não ter solução fácil. Só poderá, teoricamente, ser ouvido quem emitir uma opinião ajuizada, dentro dos cânones regulamentares, segundo padrões comummente aceites. Importa, porém, recordar, a propósito, o poema-tisana, sábio, de Ana Hatherly: «Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come»!

Ora, guiados por Hatherly, será verdade o que este provérbio estabelece? Não será que todos têm direito a expressar-se, e que o «céu» (uma forma de «representação» das entidades divinas) todos ouve? Em qualquer religião todos têm o direito de se fazer ouvir e de levantar as suas preces ao céu. É esse um dos princípios básicos das religiões – o de que todos podem ter a esperança de ser ouvidos. Assim, até os «burros» podem ter a esperança de que as suas vozes chegarão ao céu…

Até porque não sabemos bem «O que é a vida? O piscar de um pirilampo na noite. O hálito do búfalo no inverno. Uma pequena sombra que atravessa o prado e se perde no pôr-do-Sol», como diz David Shields no livro com o curioso título The Thing About Life is That One Day You Will Be Dead (título que, traduzido livremente, poderia ser A Certeza da Vida é que Um Dia Estarás Morto).

Decidir, pelos outros, o que está certo ou errado, o que é ou não permitido é um ato de soberba, de quem se considera acima de todos e, como tal, pode determinar «sentenças». Mas, no fundo, aqueles que «decidem» e «mandam» são, muitas vezes, como os descreve Almada Negreiros: «Tu, que tens a mania das Invenções e das Descobertas / e que nunca descobriste que eras bruto, / e que nunca inventaste a maneira de o não seres… / Tu consegues ser cada vez mais besta / e a este progresso chamas Civilização!».

A atitude de decidir pelos outros é a de quem, olhando só para si, ignora os outros, tal como muitos adultos ignoram os desenhos que as crianças fazem e que, para elas, são verdadeiras obras de arte, seja um risco, um rabisco, uma casa, uma árvore ou uma flor.

 

 

Maria Eugénia Leitão

Escrito em parceria com o blogue da Letrário, Translation Services