Venezuela. A fraude e o novo poder

Nicolás Maduro parece ter exagerado os números da participação eleitoral. Apesar disso, o novo poder avança 

Tudo sugere que o dia de ontem foi o último em que a oposição venezuelana ocupou sozinha o edifício da Assembleia Nacional, conquistado há dois anos nas mesmas eleições que deram a primeira maioria parlamentar a rivais do oficialismo em 18 anos, desde que Hugo Chávez começou a sua revolução bolivariana, em 1999. Os deputados da maioria prometem lutar e dizem que não vão abandonar os seus assentos. Não precisam de o fazer. O governo garante que há lugar no Congresso para dois poderes concorrentes que não se reconhecem e diz também que o novo órgão plenipotenciário na Venezuela vai reunir-se numa sala em frente ao hemiciclo.

Pode não haver roubo ostensivo de lugares, mas a sessão de ontem teve na mesma o ar de fim de um capítulo. Assim que  a nova Assembleia Constituinte entrar no edifício do Congresso e ocupar a adornada Sala Elíptica, o pouco poder que manobravam os oposicionistas da Mesa da Unidade Democrática (MUD) desaparecerá.

A maioria não fez muito caso disso e agarrou-se ontem ao trabalho. Agendaram-se manifestações, convocou-se uma investigação às suspeitas de fraude eleitoral e votou-se o repúdio ao órgão que a partir de hoje vai reunir-se na sala em frente. De pouco vai servir. O gabinete de imprensa de Nicolás Maduro garantia ontem que a Assembleia Constituinte seria juramentada por Nicolás Maduro ao final do dia, para lá das horas de fecho desta edição e num recinto de concertos, em Caracas. Não contando com imprevistos, a Constituinte será oficialmente empossada hoje. E, para todos os efeitos, também hoje se cumprirá a promessa que fez Diosdado Cabello há dois anos, apercebendo-se da iminente derrota eleitoral: “Tiram-nos pela porta, metemo-nos pela janela.”

Fraude? Maduro dava ontem seguimento às celebrações fazendo vista grossa às notícias da manhã. O presidente da empresa que há 13 anos faz a contagem dos boletins eletrónicos na Venezuela anunciou que o governo de Nicolás Maduro exagerou a participação eleitoral de domingo em “pelo menos um milhão de votos”. O dado é importante. O presidente venezuelano, assim que se assegurou que a arquitetura das eleições privilegiaria militantes e simpatizantes do PSUV, procurou que a derrota não surgisse por outro lado, por via de uma grande abstenção. Maduro disse no domingo que votaram cerca de oito milhões de pessoas, o que equivale a uma participação de cerca de 40% do eleitorado, já muito inferior à que na vitória da oposição há dois anos e que rondou os 74%. Reduzindo a participação para os sete milhões de eleitores, a taxa de participação cairia para os 35%. “Não há qualquer margem de dúvidas”, assegurava ontem o presidente da Smartmatic, Antonio Mugica. 

A versão dos acontecimentos que a oposição anunciou domingo ganha mais força. Os partidos da MUD diziam que apenas dois milhões de eleitores foram às urnas eleger a Assembleia Constituinte – uma votação que a oposição boicotou, não enviando sequer observadores. Outras entidades falavam de três ou quatro milhões de eleitores, de acordo com o “Financial Times”.

As suspeitas, contudo, não impediam que ontem Vladimir Padrino, general e ministro da Defesa, fosse à televisão garantir a lealdade dos militares ao governo de Nicolás Maduro: “Pedimos respeito pela nossa democracia, pela maneira que escolhemos seguir o caminho que merecemos seguir em paz, em democracia, com tolerância, sem violência e sem nos encaminharmos para um golpe.”

Crítica externa  A resposta da comunidade internacional ainda se faz a duas velocidades. A União Europeia  confirmou ontem o que já tinha dado a entender segunda, não reconhecendo o voto para a Assembleia Constituinte, embora tenha ficado aquém das sanções que vem pedindo enfaticamente o governo espanhol, que propôs também ontem que estas assumam a forma de uma interdição à entrada de responsáveis venezuelanos em território europeu.

Os Estados Unidos, únicos a aprovarem sanções contra o próprio Nicolás Maduro no rescaldo da votação de domingo, sugeriram terça-feira que procuram estratégias para forçar a retirada do atual chefe de Estado. Foi Rex Tillerson que o disse numa conferência de imprensa, numa tirada que ontem faziam circular publicações favoráveis ao governo como prova de que os americanos procuram destabilizar o país e promover um golpe de direita: “Estamos a avaliar todas as nossas opções políticas para ver o que podemos fazer para criar uma mudança de condições em que Maduro ou decide que não tem futuro e se retira por vontade própria, ou nós fazemos algo para que o governo regresse à sua Constituição.”