Graça de Espírito Santa – Santo

Há nomes épicos. Há nomes metafísicos. Há nomes só nomes. E há nomes religiosamente fechados em si próprios. Uma espécie de cobra que se vai comendo a partir da cauda até cumprir o círculo impossível. Por exemplo: Santa Graça Espírito Santo.  É difícil arranjar melhor, mais redondo. E, ainda por cima, Guilherme. Convenhamos: é um…

Há nomes épicos. Há nomes metafísicos. Há nomes só nomes.

E há nomes religiosamente fechados em si próprios. Uma espécie de cobra que se vai comendo a partir da cauda até cumprir o círculo impossível.

Por exemplo: Santa Graça Espírito Santo. 

É difícil arranjar melhor, mais redondo. E, ainda por cima, Guilherme.

Convenhamos: é um nome que parece um verbo – assim, como se o conjugássemos nessa graça de espírito de santa-santo.

Dizem que as fotografias não têm movimento. Mentira! Têm o movimento inimitável das imagem congeladas para sempre. Vejam um fotografia do grande Roland Oliveira com Espírito Santo e Rui Mingas, saltadores em altura de um Benfica e de um Portugal que já passou. Guardem-na na memória e fiquem com a sua juventude entretanto impossível. Confesso: comovo-me. Se calhar, comovo-me com pouco.

A irreversibilidade dos dias.

E, ao mesmo tempo, a eternização da mocidade.

Guilherme Espírito Santo era um daqueles negros plásticos, «imperadores etíopes de rancho», como diria Nelson Rodrigues, negro de se perfilar impávido na frente de Mansa Moussa, o rei de Timbuktu, a cidade das ruas pavimentadas a ouro.

Em seguida, uma energia tomava-lhe conta dos nervos e dos músculos. E voava, plácido, como um Mercúrio retinto de asas nos pés.

Precisava de espaços. Os espaços da sua África da infância, ele que  por simples acaso nasceu em Lisboa.

O espaço do campo de futebol e o espaço do salto.

Salto em altura; salto em comprimento; triplo salto.

«Fui mordido por um macaco», explicava ele a elasticidade inquieta.

Precisava de golos. Bebia-os sofregamente da mesma forma com que o Vampiro de Dusseldorf chupava as carótidas das criancinhas lá na escuridão sinistra da Floresta Negra.

Houve um vez…

Há sempre uma vez.

Nomes a seu lado de brilho intenso, sóis vestidos com camisolas vermelhas: Albino – Francisco Alves Albino, magro, fino, fĺexível e resistente como um vime; o duro e intratável Gaspar Pinto, a roçar a brutalidade; Augusto Amaro, guarda-redes da sincronização dos ângulos; Alfredo Valadas – pontapeador emérito, incansável, tonitruante; o terrível Rogério Sousa…

Dia 5 de Dezembro de 1937.

Espírito Santo iria ser abençoado por um momento espontaneamente divino, mas ainda não o sabia.

Campo das Amoreiras. O adversário era o Casa Pia: gansos de camisolas pretas.

E a lenda negra de Espírito Santo!

Logo aos 6 minutos, Anónio Wiza bate Augusto Amaro e causa surpresa.

O Benfica está perro de movimentos no seu ataque. Demora a impor um ritmo forte e, até fazê-lo, conta com a oposição do guarda-redes Armando Jorge.

Xavier e Valadas, ausentes, são saudosamente recordados por um público recalcitrante. Navalhas é um ponta direita intermitente.

Mas ergue-se a sombra escura e reluzente de Guilherme Espírito Santo. 

Uma sombra pode reluzir? Que importa? É fundamental escrever para que ninguém esqueça.

Poucos como ele até hoje tiveram tão leve agilidade. Pairava sobre a grande área do adversário, ameaçando primeiro, cumprindo em seguida a promessa inquebrável do golo.

Aos 38 minutos faz o empate. Um minuto depois, coloca o Benfica em vantagem.

O intervalo regista a diferença curta, inquietante.

Ninguém poderia sequer adivinhar o que estaria para vir.

A galhardia dos gansos duraria pouco.

Os golos jorraram como champanhe borbulhante numa taça do mais límpido cristal da Boémia.

Espírito Santo faz 3-1; Rogério Sousa 4-1.

A velocidade do avançado do Benfica é caprichosa e assassina. As movimentações atacantes são opressivas e desfazem por completo uma defesa suave como algodão doce.

Espírito Santo aumenta para 5-1, para 6-1 e para 7-1.

Até onde irá a sua ansiedade? Que fim terá essa voracidade de golos que o enlouquece, dançando sobre opositores derrotados, os pés em fogo de um bailado de Falla disparando mortíferos remates quase todos imparáveis?

Por breves momentos, Espírito Santo parece saciado.

Baptista faz o 8-1 e Eduardo Oliveira o 9-1 e o 10-1.

Os homens do Casa Pia já nem saem do seu próprio meio campo, agarrados aos destroços de uma fortaleza em ruínas desde o minuto 37.

Mas Guilherme, o negro Guilherme, ergue-se ainda como um ser bíblico daqueles que povoam os Evangelhos. Volta à carga, sanguinário e sôfrego.

Marca mais um: 11-1. E outro: 12-1. E outro ainda: 13-1.

É o relógio que o manda finalizar o massacre. O fim chega. Não há tempo para mais pontapés certeiros e devastadores.

Espírito Santo é para os gansos mais que um espírito: é um fantasma. Assustador. E eles não passam de almas penadas para as quais os três apitos finais são o som aconchegante de um alívio raro.

afonso.melo@newsplex.pt