Pedro Cabrita Reis. ‘Sou muito mais poderoso do que qualquer droga’

O escultor fala com o SOL  no British Bar, no Cais do Sodré, onde patrocina um projeto pioneiro. E fala de arte, de viagens, de gastronomia e de bebidas. Admite não ser suficientemente ‘sofisticado’ para gostar de comida minimalista, revela – como um segredo – a sua atração por andar de comboio e explica por…

Pedro Cabrita Reis. ‘Sou muito mais poderoso do que qualquer droga’

Quando termina o primeiro copo de whisky, Pedro Cabrita Reis pergunta-nos, cavalheirescamente, o que estamos a beber, e pede mais uma rodada. Habitué do local, chama a empregada pelo primeiro nome. Não é por acaso que a conversa decorre à mesa do British Bar, no Cais do Sodré. Há muito que o artista plástico faz do local o seu ‘escritório’; e em janeiro teve a ideia de usar as vitrinas que dão para a rua para mostrar obras de artistas sobre cujo trabalho sente «curiosidade». O projeto ‘British Bar’, uma iniciativa com algo de «inusitado», como gosta de dizer, serviu de ponto de partida para uma conversa sobre a relação de Cabrita Reis com a arte dos outros, a sua paixão pela vida no campo e as suas experiências no mundo da gastronomia.

Quer falar-me das peças que estão ali nas montras?

Se calhar começávamos um pouco mais atrás, pelo ‘porquê’ de isto estar a acontecer. Esta casa, o British Bar, tem sido ao longo de muitos anos da minha vida uma espécie de escritório. Fiz as Belas-Artes aqui em cima e já nessa altura vinha para aqui com outros estudantes. Outras vezes íamos para o bar aqui em frente, o Bar Americano, que tinha um encanto decadente muito particular.

Ainda tem…

Com aqueles telões todos para o futebol, já não.

Na altura este bar era muito diferente do que é hoje?

O Cais do Sodré era um centro de despachantes, as atividades portuárias estavam muito concentradas por aqui. E era normal a uma certa hora ver-se aqui essa malta, cavalheiros sérios e idóneos, a beber umas cervejas e a falar aos gritos de mulheres, futebol, política e pouco mais. Essa paisagem profissional e humana desapareceu, porque desapareceu também esse mundo dos despachantes, mas continua a ser um sítio de encontro de umas certas tertúlias. A casa é muito animada e tiveram o bom senso de não fazer obras dramáticas. Se bem se lembra, havia aqui por cima um retrato a lápis do José Cardoso Pires, e já se fizeram aqui coisas de índole cultural, como debates e lançamentos de revistas.

Tem um certo lastro cultural, portanto…

Mas não excessivo. Se fosse excessivo, não tinha graça.

A que horas costuma vir para aqui?

Gosto de vir ao final do dia, por volta desta hora [seis da tarde]. Existe uma mesa que tem um enfiamento muito agradável para o rio. Há milhares de pessoas que descem, vão apanhar os barcos para regressar a casa, e vê-se uma movimentação e um trânsito de gente que é belíssimo, quase hipnótico. Passo aí muitas horas a fazer nada.

Sozinho ou acompanhado?

É como calha. Gosto muito de estar sozinho e de beber copos nos bares e tudo isso. Mas sempre aparece uma pessoa ou outra que se conhece. Acaba por ser também um lugar bom para marcar encontros e reuniões. E tantas horas aqui passei que um dia – as primeiras notas que tenho sobre isso são de janeiro – falo com o Zé Carlos, que é o dono deste bar e do Americano: ‘Zé, não sei se sabe, mas eu sou pintor. E gostava de fazer uma experiência, uma brincadeira, numa dessas vitrines’. E o Zé, num assomo de generosidade e de clarividência, vira-se para mim e diz: ‘Uma? Faça nas três’.

O projeto já vai no quinto mês, não é?

Quando isto começou, tinha a intenção de fazer apenas até ao final deste ano corrente. Mas de abril a dezembro não era redondo, por isso resolvi fazer um ano lunar, com 13 exposições. Foi expandido até ao próximo mês de abril de 2018 com este formato: cada montra, um artista; três montras, três artistas, de gerações e com sensibilidades muito diferentes. Não tem, ao contrário de outras exposições, um projeto curatorial. Até já disse por piada que ‘a verdadeira essência deste projeto curatorial é beber umas cervejas aqui, uma sexta-feira por mês’.

Como escolhe os artistas? São amigos seus?

Bom [com ironia], no caso da Rosa Ramalho não cheguei a tempo… Mas a maior parte deles sim, são pessoas que conheço, uns com maior grau de intimidade, outros mais superficialmente. Convido pessoas por cujo trabalho nutro curiosidade. E cada exposição tem de ter um caráter inusitado, tem de ser uma coisa diferente, não é um local para se porem telas, nada disso. É um contexto e um projeto que pede uma certa dose de frescura, de agilidade. Tem havido um feedback da comunidade muito entusiástico. As inaugurações são muito concorridas, o bar oferece um pequeno buffet e estamos aqui uma hora com bar aberto entre as sete e as nove, que acaba mais ou menos às onze [risos]. É uma coisa que me dá imenso prazer. E as pessoas, sob diversas formas, fazem um comentário que no fundo quer dizer sempre o mesmo: o que é poderoso aqui é justamente o inesperado e esta ligeireza agradável de encontro.

Saiu tudo da sua cabeça?

Nasceu da minha cabeça e é tudo financiado por mim, à exceção de uma pequeníssima mas significativa participação da CML, que me imprime estas folhas, ainda que eu tenha de dar o papel…

Há cem anos, o artista francês Marcel Duchamp pegou num urinol e apresentou-o como obra de arte numa mostra de artistas independentes. Com esse gesto mostrou que, consoante o contexto, o significado da peça altera-se. Neste caso, expor obras de arte na montra de um bar é diferente de expô-las numa galeria convencional?

Claro que sim, e essa é uma das mais-valias deste projeto. Num sítio que faz parte da vida de todos os dias, quer para os frequentadores, quer para os que aqui passam e nunca entraram nem entrarão, há esta zona de fronteira entre o interior e o exterior que é a vitrina e que, em vez de ter umas garrafas de cerveja e umas gaiolas com pássaros secos lá dentro, tem umas coisas estranhas. E a ‘estranheza’ é uma coisa que eu considero importante trazer para o domínio do comum, provocando com isso o interesse, a curiosidade, a interrogação. A arte, felizmente, não é um edifício mental para construir certezas, é um exercício de perguntas e de dúvidas. O Duchamp faz um corte muito dramático e profundo na compreensão daquilo que é um objeto de arte, ao colocar o urinol como objeto de atenção estética. Uma peça descontextualizada abre um território de questões e de perguntas. E eu ficarei muito contente se, quando isto acabar, for recordado como uma coisa que transformou um pouco…

Que expandiu essas fronteiras?

Claro. No meu modo de ver, o grande objetivo da obra de arte é expandir a inteligência. Não é construir objetos mais ou menos bonitos. A obra de arte não educa pela cátedra nem pelo dogma – educa construindo uma aptidão e uma curiosidade por aquilo que à partida não se conhece.

Sabe se este modelo já tinha sido ensaiado noutros sítios?

Uma das imagens recorrentes quando comecei a cozinhar este projeto é a do Café Gijón, em Madrid. Desde os anos 40, está lá uma peça do [Alexander] Calder lindíssima, ali pespegada no meio do Café Gijón, que é um ícone madrileno. Aquilo, de alguma maneira, informou-me.

Na verdade, até existe uma certa tradição de arte nos cafés e nos locais de tertúlia… Temos a Brasileira cá e o Els Quatre Gats em Barcelona.

Sim, há experiências desta natureza, de índole não totalmente idêntica, mas que se inscrevem nesta história de fazer acontecer arte em sítios que à partida não seriam canónicos.

Existe alguma coisa que ligue estas peças, se não diretamente, pelo menos no seu pensamento?

Não. Não existe. São os artistas que me dizem: ‘Tenho uma peça que deve ser ótima para ali’. Gosto de ter essa abertura e gosto de ser surpreendido. E quero sempre que haja um qualquer toque de irreverência ou de inesperado. Na edição anterior, numa das janelas, estava uma obra do Francisco Queirós que era um pedaço de geleia de morango ou de marmelo e tinha lá espetadas uma quantidade de beatas daqueles cigarros indianos que ele fuma, os bidis. Parecia uma maquete mas com uma certa dose de abjeção ao mesmo tempo e tornava-se impossível não olhar. O Francisco tinha outra peça mais serena. Eu disse-lhe ‘É uma grande peça, mas a da compota e das beatas é que é a peça para o British’.

A maior parte dos artistas vive muito concentrada na sua obra, às vezes de forma obsessiva, e vê tudo o resto como uma perda de tempo. É um ato de generosidade da sua parte dedicar esta atenção ao trabalho de outros artistas?

Diz-se isso dos artistas e de uma forma geral temos de admitir que é verdade. Mas eu acho que a coisa mais importante para um artista é manter sempre viva a curiosidade, a capacidade de manter uma total abertura pela diversidade do mundo. A obra dos outros artistas faz parte da realidade que me circunda. Sigo-a por vezes com maior intensidade, outras vezes com menos, mas é uma coisa presente no meu modo de estar e de ser artista. Tal como tenho uma curiosidade infinita sobre o que se passa à minha roda, também mantenho viva essa relação com o trabalho dos outros.

Diz-se muito que Portugal é um país pequeno, que há muita inveja. No meio dos artistas não há competição?

Não há nenhuma área da atividade humana cujos membros não tenham maiores ou menores relações de proximidade ou de afetividade com os seus pares. Os músicos juntam-se para fazer discos, o Carlos do Carmo canta com a Mariza, há filmes que são feitos a quatro mãos… Essas coisas aconteceram sempre e acontecerão sempre. O que não quer dizer que cada artista não tenha uma noção muito clara da autonomia da sua obra. Os projetos desta ordem, em que não estão envolvidas coisas tais como a carreira, o dinheiro ou os lóbis relacionados com os museus ou os colecionadores, e a frescura deste projeto, propiciam essa disponibilidade e a redução dessa conflitualidade entre artistas que noutras circunstâncias provavelmente não estariam tão perto uns dos outros. Isso é bom.

Mas a carreira e o dinheiro também são importantes…

A carreira e o dinheiro são fundamentais. Sem o dinheiro não se consegue trabalhar, sem dinheiro o artista não consegue realizar todos os projetos que tem em mente, e o artista que não consiga realizar os projetos que tem em mente é um artista que, com o tempo, amargura. Porque se sente – e legitimamente – injustiçado.

Alguma vez deixou de fazer uma obra por falta de dinheiro?

Nunca na minha vida. Se não tenho dez mil euros para fazer um vídeo, tenho com certeza dez euros para comprar uma caixa de lápis e uma resma de papel. Com maior exuberância ou contenção, serei sempre artista independentemente dos modos, dos meios, da tecnologia e das ferramentas ao meu dispor. Os meios são apenas sapatos para andar. O que tu queres é andar. Podes andar descalço, de chinelos, podes andar de alpergatas, podes comprar um par de sapatos Gucci ou Church’s. Mas a questão é andar. Tens de ir daqui para ali. E os artistas encontrarão sempre forma de fazer essa itinerância. 

O Picasso dizia isso de forma bastante enfática: ‘No dia em que não tiver tintas pinto com sangue e se não tiver sangue pinto com merda!’.

Exatamente. E ele toda a vida pintou com sangue, metaforicamente falando.

Há pouco disse que a obra de arte serve para expandir a inteligência. Parece-me que existe às vezes uma intelectualização excessiva da obra de arte. Trazer estas obras para um bar é uma forma de associar a arte também ao prazer?

Sim. Quero que este projeto funcione justamente como um convite para descobrir esse prazer. Esta operação British Bar tem a ambição simples mas vasta de trazer mais pessoas a olhar. As pessoas têm mais atenção do que se possa imaginar e são muito mais inteligentes do que se possa prever. Seria um desastre que toda a gente visse da mesma maneira, e é essa riqueza infinita e essa variedade infinita e essa inevitável autonomia na maneira como se olha que vão construir aquilo de que fala, que é essa expansão da inteligência.

O olhar de um artista é diferente do olhar de quem passa?

Naturalmente. 

Quais são as especificidades desse olhar?
 

Não sei dizer quais são as especificidades, mas por alguma razão existem artistas. São pessoas das quais se espera que tragam à comunidade a que pertencem o contributo de mudar a forma como se percebe a realidade. A arte existe nesse território delicadíssimo em que se espera poder transformar e aumentar nas pessoas a sua disponibilidade para serem melhores, para terem um pensamento diferente, para inclusive terem uma vida melhor.

Regressando ao tema da sua relação com a obra de outros artistas, penso que há cerca de um ano vendeu a sua coleção de arte. 

É um facto.

Essas obras estavam em sua casa, convivia com elas diariamente?

Era impossível. Eram cerca de 400 obras, algumas delas maiores do que este bar. Durante anos, aluguei um armazém de dimensões faraónicas na periferia de Lisboa para ir guardando a coleção. Eu comprei obras entre a segunda metade dos anos 90 e a segunda metade dos anos 2000. Estive dez anos a comprar.

Alguma vez comprou arte como investimento?

Não, não, não, não. Comprei com a intenção de fazer uma coleção que fosse ela própria não diria um espelho, mas uma continuação da minha maneira de ser. Nunca comprei obras numa perspetiva de construir didaticamente uma coleção: aqui temos o conceptual, aqui o minimalismo, aqui isto e aquilo. Comprei exclusivamente fundamentado naquilo que acredito ainda hoje ser a forma como se constrói uma coleção particular. Os colecionadores privados têm o privilégio de comprar aquilo que gostam. E foi isso que sempre mantive como pensamento fundador nas minhas escolhas. Comprei basicamente [obras de artistas] da geração que se seguiu à minha. Para o bem e para o mal, sou conhecido como um artista dos anos 80 e todas as minhas compras começaram por incidir nos artistas dos anos 90, mas rapidamente se adicionaram os artistas dos anos 2000. A questão que se punha era: comprar eternamente ou fechar no tempo aquele bloco? Eu achei mais interessante fechar esse bloco e deixar que outros a seguir viessem colmatar falhas e continuar essa ideia.

Foi por isso que vendeu?

E por outra coisa. Aquilo que é mais importante na obra de arte é a visibilidade. Essa visibilidade implica uma logística e um mecanismo complexo e dispendioso…

… que não está ao alcance de um particular?

A não ser que seja um multimilionário, que não é de todo a minha situação. De modo que pensei: a única forma de garantir manutenção, cuidado, visibilidade e continuidade é colocar isto num sítio apropriado. O sítio apropriado era um museu, e o museu que estava com maior abertura, disponibilidade e interesse era o MAAT. Por isso foi com eles que eu tratei da questão.

Quando tinha a coleção nesse armazém, às vezes ia lá ver alguma peça específica ou bastava-lhe saber que era proprietário daquelas obras?

Era uma mistura. Às vezes dizia aos meus funcionários: ‘Tragam aquela peça e ponham-na no meu ateliê’. E estava um mês a olhar para ela. Em casa não tenho arte. Nenhuma, nem minha.

O que tem então?

Objetos de que gosto. Mesas, pedras… Tenho uma pedra lindíssima que trouxe da barragem de Foz Coa. Precisámos de oito pessoas para a meter dentro do carro e é apenas um enorme calhau de xisto. Lindo. Está em cima de uma mesa na sala. O que tenho em casa são essas coisas.

E nunca teve arte?

Nunca tive. Ainda agora veio um tipo do El País fazer-me uma entrevista. Eu estava no Algarve, disse-lhe para ele apanhar um avião e fui buscá-lo a Faro. Quando me entrou em casa, ainda vinha com a mala a arrastar, a primeira coisa que me perguntou foi: ‘Mas não tens nada nas paredes?’. ‘Não’. Par contre, tenho cinco enormes janelas de dois metros e meio por dois metros e meio que são pinturas autênticas. Debati com o arquiteto o sítio exato para as pôr, em função do enquadramento perfeito. E depois, quando estavam feitas, então plantei as árvores. A minha obra de arte em casa é a construção do jardim e a colocação das janelas. Lá dentro não tenho nada, nem obras minhas nem da Patrícia Garrido, a minha mulher, que também é artista.

Uma vez que não tem arte em casa, agora que também não tem coleção vai deixar de comprar obras?

De momento estou parado. Não quer dizer que não retome, provavelmente com outro tipo de coisas. Sempre acalentei a ideia de ter uma coleção de desenhos de escultores de meados do século XIX até à atualidade. Vamos ver se isso vai para a frente. Para já, o que estou a comprar é terra e árvores, a fazer vinha, azeite.

Está a dedicar-se a isso?

Quando uma pessoa faz, como eu fiz agora, 61 anos, a vida ganha dimensões que antigamente não se previam.

Houve uma altura da minha vida, quando era jovem, em que era um ‘lisboetómano’ fanático e obsessivo. Hoje já não sou, não encontro razões para isso. Outras gerações mais novas verão Lisboa com o mesmo encanto com que eu a vi quando tinha a idade que eles têm agora. Agora o meu encanto é o campo e o mar. Gosto muito de viver no campo.

E onde fica a sua casa?

Na serra [do Caldeirão], em Tavira.

É lá que vive mesmo?

Partilho-me entre Lisboa e Tavira. Mas estou a construir uma vida de forma a que, muito em breve – daqui a três ou quatro anos –, passe a ser lá o sítio principal e Lisboa fique secundário, ao contrário do que é agora.

O facto de se dedicar às árvores, de produzir vinho e azeite, significa que vai dedicar-se menos a fazer arte?

Para mim é uma extensão da pintura ou da escultura.

Por outras palavras, vai ter menos tempo para se dedicar a fazer arte?

Não, porque isso acaba por se transformar… naquilo a que as pessoas chamam ‘inspiração’.

O contacto com a natureza inspira-o?

Não me posso queixar da falta de inspiração, porque qualquer coisa me serve para trabalhar. Gosto muito de paisagem, de desenhar coisas da natureza – árvores, pedras, plantas, por aí fora. À minha maneira. Provavelmente algumas pessoas dirão: ‘O que são estas manchas?’. E eu respondo: ‘Isto não é uma mancha, é uma alfarrobeira’. Digamos que flui de uma maneira ininterrupta, da paisagem para mim, uma espécie de energia que depois se materializa no meu trabalho.

Há momentos em que se sente particularmente inspirado?

Há momentos melhores. A disponibilidade para trabalhar não é uma linha reta – agora tive uma imagem terrível, que é a da linha reta naquelas máquinas dos hospitais… A linha reta é sinónimo de que estão mortos. A disponibilidade é assim [desenha no ar com o indicador um gráfico com picos e quedas]. Tens de estar atento. Há momentos em que o teu pensamento está claramente mais acordado, mais acutilante, é mais rápida a forma como passa da mente ao papel ou à tela ou à madeira. Mas como eu não faço nada mais na minha vida que não seja trabalhar, encaro tudo isto como parte do trabalho. Quando ando a passear de manhã com os meus cães e dou a volta à terra com o homem que trata daquilo, estou a trabalhar. Só aparentemente é uma viagem para falar de oliveiras – aquilo é outra coisa, são rituais de preparação. Todos os lutadores de artes marciais têm lá os seus momentos de concentração. Eu também tenho. São estes.

Há muitos escritores que andam ou correm para pôr o sangue a circular e ficarem mais despertos e ativos…

Vou dizer uma coisa que não terei dito muitas vezes. Há uma circunstância da minha vida, um facto que produz novos trabalhos com uma velocidade furiosa: andar de comboio. Se andar de avião, nada; se andar de carro, nada; se andar de mota, nada; se andar a pé, pouco. Mas andar de comboio…

Dá-lhe uma espécie de injeção de adrenalina?

No comboio estás sentado, tens aquele ecrã que é a janela e passas a grande velocidade por sítios diversos, estás sempre a ver coisas diferentes. As estradas são desenhadas de uma forma que nos afasta da convivência com a paisagem. O comboio tem essa grande qualidade de estar nas traseiras das cidades. O comboio passa sempre pelos sítios mais tristes, mais medonhos, onde o lixo se amontoa, para onde toda a gente manda as coisas que já não quer. E isso são momentos de uma intensidade plástica e também conceptual difícil de superar. Às vezes meto-me num comboio e vou ao Porto. Fazer o quê? Nada. Vou almoçar, mas vou sobretudo andar de comboio. O comboio é uma grande ruína romântica na vida dos tempos de hoje.

Acontece-lhe ter momentos em que se sente inspirado mas não é a altura certa para trabalhar porque não tem as ferramentas à mão?

Eu vivo no ateliê – isso responde à pergunta. 

Mesmo às três ou quatro da manhã?

Salto da cama e venho cá para baixo. Ainda por cima, durmo mal. Toda a vida dormi em estado de vigília, com um olho aberto e outro fechado. Não tenho aquelas coisas que às vezes os escritores têm, que é um bloco de notas na mesa-de-cabeceira (nem tenho mesa-de-cabeceira, tenho só uma garrafa de água no chão). Mas às vezes, antes de ir dormir, estou aqui muito depressa [imita o som da ‘cabeça a trabalhar’]. Acho que é mesmo um processo químico.

Não é monótono viver e trabalhar no mesmo sítio? Estar confinado a esse pequeno círculo?

Não, sabes porquê? Porque não poderia adorar mais aquilo que faço e a vida que tenho. Aquilo que sou é o que eu faço e aquilo que faço é o que eu sou. Isto é uma coisa intensa, uma vertigem que tem aspetos variados mas sempre o mesmo ritmo, sempre aquela turbina. E como vivo muito perto da [ponte] Vasco da Gama, a qualquer momento vou de mota ou de carro até ao campo, em duas horas e meia estou lá. Não tenho essa monotonia. E viajo muito, também. Talvez demais. Mas não posso evitar.

Além de exposições há outros convites, outros pretextos para viajar?

Faço um pouco de tudo. Conferências, workshops em universidades… Gosto de falar e acho que isso é conhecido publicamente, donde recebo bastantes solicitações para ir conferenciar. Já fiz uma quantidade grande dessas performances e nunca as preparo nem faço powerpoint. Chego, sento-me e começo a falar.

Gosta de viajar?

Provavelmente gosto um pouco menos hoje do que gostava quando era mais novo. Continuo a gostar de me encontrar com pessoas e conversar. 

Muitos viajam em trabalho e não têm tempo para visitar nada. É o seu caso?

Quando viajo, o que conheço basicamente são os museus ou às vezes nem os museus, só esta ou aquela pintura em particular que está neste ou naquele museu em particular e vou lá de propósito para ver. Não sou uma pessoa muito interessada no turismo. Vou a sítios de trabalho e depois sei que há isto ou aquilo que me interessa. A minha curiosidade deriva da obsessão do trabalho.

Mas se for a Nova Iorque não tem curiosidade de subir ao Empire State Building ou ao Rockefeller?

Já subi meia dúzia de vezes. Não lhe vou mentir nem me vou pôr numa posição snobe. Claro que faço essas coisas. Mas só viajo por trabalho. Ninguém me arrancaria de Lisboa para ir, por exemplo, à floresta amazónica. Quero lá saber da floresta amazónica para alguma coisa!

Prefere ficar a trabalhar?

Não é preferir, é uma coisa inevitável.

Falando ainda de inspiração: depois de dois copos de whisky  pode sentir-se mais inspirado?

Vou dizer uma coisa que pode parecer um bocado arrogante, mas sou muito melhor do que qualquer droga ou álcool, sou muito mais poderoso do que isso. Eu caí no caldeirão quando era pequeno. Não preciso de mais. [Pega no copo de whisky] Isto não me serve para nada. Gosto disto tal como gosto de estar com pessoas a conversar e gosto de charutos. Daqui a um bocado vou jantar – e gosto de jantar. Mas não tenho muletas, tenho prazeres. Gosto muito de beber e bebo muito. Só três coisas: tinto, champanhe e whisky. Não bebo mais nada. E água.

Não gosta de cerveja?

[Faz uma cara de repulsa] Desde puto nunca gostei de cerveja. Toda a gente já bebeu cerveja na vida e eu também. Tal como já devo ter comido três ou quatro hambúrgueres e lembro-me de todos os sítios onde os comi. De cerveja não gosto…

E só bebe certas marcas específicas?

Não vamos pôr isso no jornal… Posso dizer que este tipo de whisky, o scotch (apesar deste ser irlandês), são whiskies chamados ‘de rolar’, para refrescar enquanto estou à conversa. Daqui a um bocado, depois do jantar, nunca me verás a beber um scotch. Só bebo whiskies de malte.

Tal como um passeio, uma refeição também pode fazer parte da preparação para o trabalho?

A refeição é uma missa. Até tem um altar, que é a mesa.

E leva isso a sério? É muito exigente?

Não, de todo. Tenho imenso prazer em estar à mesa. E tanto pode ser no melhor restaurante como numa taberna a comer umas sandes de courato e a beber um penálti de tinto. A par disso é a altura oportuna de dizer o seguinte: não sou um admirador por aí além das novas experiências de cozinha. Tenho pena, se calhar estou a perder coisas únicas.

Mas já experimentou?

Fui convidado pelo próprio Adrià para ir um dia ao elBulli, que era ali ao pé de Girona, junto ao mar. Fomos para esse evento, eu e mais oito ou nove amigos, todos artistas. Fizemos uma degustação de 44… eu não diria pratos… de 44 coisas. E 12 bebidas – espumantes, champanhes, tintos, brancos… Foi um momento único, com certeza, mas não me sinto entusiasmado…

Não ficou deslumbrado?

De forma alguma. Mas foi uma experiência social interessante.

Social?

Social. Nesse mesmo dia voltei para o hotel e comi lindamente. Sou provavelmente muito primitivo, pouco sofisticado, para esse tipo de coisas, mas sinto-me muito bem assim. Qualquer espuma jamais se comparará a uma posta de bacalhau cozido. E é preciso dizê-lo alto e bom som.

Tenho um amigo que anda pelo Oriente e que come as coisas mais extravagantes que lhe aparecem. Cobras, insetos, até uns ovos de pato em que se vê o embrião lá dentro… 

Devo dizer que não tenho repugnância em relação a nada. Como tudo o que há para comer. Já comi lacraus em Xangai, cobra…

Aonde?

Aqui no Algarve, na serra. A serra do Algarve é um sítio de sobrevivência, duro, portanto tudo o que mexe é para comer. Comi gafanhotos salgados em Tóquio, que o vendedor tira com uma colher e despeja para dentro de uma página da lista telefónica enrolada.

Como as castanhas!

E é ótimo. Chegas a um bar no mercado do peixe em Tóquio, pedes dois sakés frios, e aqueles gafanhotos salgadinhos são uma maravilha. Qual tremoço, qual camarão, qual quê! Não tenho repugnância por nada no que diz respeito ao universo da gastronomia. Maça-me e dá-me tédio as espumas, a cozinha molecular, tudo isso. 

Há o equivalente disso na arte?

Claro que sim. Há imensa arte ‘molecular’ e ‘espuma’ artística. Desaparecerá calmamente, como essa cozinha também.