Yann Gonzalez: “Vivo a vida real, não preciso de a filmar”

Com “Les Îles”,  o realizador francês venceu o prémio  de melhor curta-metragem  na 21.ª edição  do Queer Lisboa.

Será o amor capaz de nos excitar como é o sexo? Pergunta de Yann Gonzalez a meio desta conversa na varanda do São Jorge, em Lisboa, noite das mais frias de setembro. Mas pergunta que já lá estava, pergunta que faz todo este “Les Îles”. Filme de 23 minutos que vê como o “lado B explícito” da longa que terminou de rodar este verão, a sua segunda depois de “Os Encontros da Meia-Noite” (2013). Filme que veio como penso rápido para um momento de frustração e que se tornou no seu preferido de todos: seis curtas e uma longa, mais outra, “Un couteau dans le coeur”, a caminho. Todos ligados por este fio surrealista que será uma forma de percorrer este “Les Îles”, que o trouxe ao Queer Lisboa depois de o ter levado a Vila do Conde. Duas viagens a Portugal para dois prémios, depois de uma Palma Queer em Cannes, tudo a partir daquela visão de duas pessoas que fazem amor com um monstro. Surrealismo, de novo, que a vida real já a vive todos os dias Yann Gonzalez.  

Como é que chegaste a esta história que tinha tudo para ser sobre sexo mas é na verdade sobre amor?

Andava frustrado com o facto de não estar a conseguir fazer a minha segunda longa. Estávamos com problemas de financiamento e já há três ou quatro anos que não filmava nada, então senti mesmo a necessidade de criar algo. Algo simples, que pudesse escrever e rodar rapidamente. Fumei uns com uns amigos e tive esta visão de um casal num teatro a fazer amor com um monstro. Foi a primeira imagem. E uns dias depois disso escrevi o argumento, com esta sequência de personagens que nos levam a outras perseguindo e espalhando o desejo, de personagem em personagem.  

O meio de propagação desse desejo é o som, são gravações. Porquê?

Gosto da ideia da propagação do desejo pela linguagem, pelo som, e ocorreu-me esta ideia de uma rapariga que grava vozes e que se excita com elas.  

E ao vê-la percebemos todo o poder que podem ter essas vozes, por tudo o que imaginamos ao não podermos ver.

Acho que foi o Marquês de Sade que disse que as mais poderosas armas do prazer são a audição e o olfato e concordo completamente. Ao ouvir por exemplo um gemido quando não se sabe o que se está a passar, é possível imaginar-se tanta coisa. Interessou-me esta ideia de uma rapariga que se excita com palavras de amor, não apenas com o sexo mas também com o amor. Será também o amor capaz de nos excitar? Eu acho que sim, mas talvez seja apenas o Cinema. 

Não é só Cinema.

[Risos]

Explicavas que fizeste este filme pela impossibilidade de avançar com uma longa-metragem. As curtas são apenas isso, uma possibilidade de continuar a trabalhar quando não há outra forma, ou são algo mais?

Não. Não quero deixar de fazer curtas-metragens porque a curta é um exercício de estilo, a possibilidade de trabalhar com equipas mais jovens, descobrir novos atores, criar novos encontros. E isto é o mais importante. Faço filmes para criar encontros, conhecer novas pessoas. Gostei muito de trabalhar com uma equipa jovem neste filme, pessoas de 22, 25 anos, que estavam a fazer isto pela primeira vez. Foi tão estimulante estar com estas pessoas na rodagem, vê-las serem desafiadas – e a desafiarem-me também, porque tinha que estar ainda mais focado no que estava a fazer. Cada filme, seja uma longa ou uma curta-metragem, é uma aprendizagem. Com as pessoas com quem se trabalha, com os erros que se cometem. E as curtas dão-nos outra possibilidade de experimentar. A minha próxima longa passa-se na indústria porno da década de 1970. Sabia à partida que seria um filme difícil de fazer, pelas cenas de sexo explícito, porque nas longas há uma preocupação comercial. Nas curtas nâo. Isso não é uma questão porque ninguém está à espera de ter retorno financeiro de uma curta. Rodar o “Les Îles” antes desta longa foi uma forma de poder experimentar estas cenas de sexo mais explícito. Não diria que é o lado negro, mas é o lado B, explícito, desta longa futura.

“Un couteau dans le coeur”, que entretanto já foi rodada.  

Sim, terminei a rodagem há três meses. Cheguei a Vila do Conde [em julho, com “Les Îles”, vencedor do prémio de melhor filme de ficção na competição internacional] um dia depois de ter terminado a rodagem. Foi um processo muito longo, que comecei a escrever há quatro anos, em torno de uma mulher produtora de filmes porno nos anos 70 que é perseguida por um assassino psicopata. Acho que vou sempre dar ao mesmo: o romântico, o terror, a tragédia, de certa forma, e a comédia também. Talvez seja a coisa com mais piada que fiz até agora. Mas às vezes os filmes de que mais gosto são aqueles de que depois as pessoas não gostam.  Isso perturba-te? As pessoas não gostarem? Com a minha primeira longa foi estranho porque houve quem gostasse mas foi como se as pessoas não se sentissem autorizadas a isso [a rir]. Por ser um filme demasiado sério. Queria que uma parte do filme tivesse piada, mas foi como se as pessoas não tivessem encontrado no filme liberdade para se rirem. Espero que desta vez encontrem esse espaço no filme.

Tomando como exemplo o início do “Les Îles”, aquele casal fazer sexo – ou a fazer amor – com uma criatura monstruosa, numa cena que nos atira para um universo próximo do surrealismo, no sentido em que não vemos isto a acontecer…

… no cinema tudo pode acontecer [risos].

De onde vem esta necessidade de fugir de um certo realismo, recorrente nos teus filmes?

Eu vivo a vida real, não preciso de a filmar. Quando vou ao cinema o que procuro é ser transportado para um outro universo. Quero sonhar com o filme, fazer uma viagem. Claro que há muito bons filmes sobre o real, mas para mim o Cinema é um meio de sonhos, de fantasia, de mundos surrealistas. Isto é algo que costumava ser feito no passado, na década de 1920, por exemplo, com o movimento surrealista, ou nos anos 70 ou 80…

Não passa despercebido esse saco que trazes do “Eraserhead”, a primeira longa-metragem do David Lynch.

[Risos] O mundo está a tornar-se num lugar cada vez mais terrível e talvez as pessoas sintam que é necessário dizer algo sobre esta nova realidade. Para mim, um sonho pode ser mais útil para nos ajudar a fazer as pazes com o mundo.

Os teus filmes vêm de sonhos também?

Às vezes, algumas sequências, mas na maior parte das vezes vêm da música. Acho que a minha grande fonte de inspiração é fumar e ouvir música.  

E voltamos ao som. Como é que de uma música aparece um filme?

Tem a ver com os sentimentos que uma música é capaz de proporcionar. Sinto uma necessidade de transpor esses sentimentos que uma música me provoca  através de imagens, uma necessidade de partilhar as emoções que aquela música me deu, de as espalhar. Este filme, por exemplo, veio de músicas antigas – a mais antiga é dos anos 70 e a mais recente de 2010, acho. Não é uma banda sonora original, foi toda construída com músicas pré-existentes. E, para mim, o filme é também um tributo a essas músicas, pelo que me proporcionaram.  

Falando em música, nessa ligação, porque também fazes música e porque trabalhas com o teu irmão [Anthony Gonzalez, dos M83]…

…uma longa-metragem é muito difícil de se fazer apenas com músicas pré-existentes. E é muito bom ter um irmão que olha para os meus filmes e para criar músicas a partir do que elas despertaram nele, no processo inverso ao meu. Nesta nova longa-metragem tenho duas ou três faixas que não são dele, são músicas dos anos 70, porque é aí que a história se passa e queria mesmo usá-las, mas deixa-me muito feliz ter uma banda sonora original composta pelo meu irmão.

Dizes que a realidade não é uma coisa que te interesse no Cinema. Isto tem alguma coisa a ver com teres deixado o jornalismo para passares a fazer filmes?

Não é que não me interesse, sinto é que faltam alternativas. Tenho saudades daqueles filmes e sinto que preciso de ir à guerra, de os fazer. Sobre o jornalismo, foi só uma maneira de ganhar a vida. Antes de ser jornalista já queria fazer filmes.