O Consórcio SCILIFE – Science in everyday life, coordenado pelo Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa (MUHNAC-UL), é um dos dinamizadores da Noite Europeia dos Investigadores no país. Ao todo, há iniciativas em 300 cidades europeias e Portugal é um dos países mais ativos. Maria Paula Diogo e Celma Padamo são as porta-vozes do SCILIFE e explicam qual é o objetivo.
A Noite Europeia dos Investigadores surge em 2005. Passados doze anos, sentem que as pessoas estão mais interessadas em ouvir falar de ciência?
A nossa perceção é que sim. Hoje são cada vez mais visíveis as questões relacionadas com problemas de uso do planeta – alterações climáticas, gestão da água, lixo, poluição, o derreter das calotas polares, etc. – e de identidade humana – inteligência artificial, robots que parecem humanos, etc. – e o público exige cada vez mais que os cientistas e os engenheiros tenham uma forte responsabilidade social e cívica. O interesse do público traduz-se, por um lado, na vontade genuína de saber o que está a ser feito e, por outro, porque é esse conhecimento que permite tornar mais robusta a intervenção da sociedade civil nas escolhas dos futuros percursos de investigação. Hoje, para além do deslumbramento que sempre houve face às novidades científicas e tecnológicas, junta-se uma consciência crítica sobre as suas possíveis interações. Neste contexto, é importante dar relevância a presença das ciências sociais e humanas – a história, a sociologia, a filosofia – neste processo de “apropriação” crítica pelo público da ciência e da tecnologia. A Noite Europeia dos Investigadores é um espaço facilitador deste relacionamento.
E o movimento inverso? Para os cientistas já é mais fácil explicarem de forma simples o trabalho que fazem diariamente?
Para os investigadores, comunicar o seu trabalho é sempre relevante. Desde o século XVIII, com o Iluminismo, esta comunicação passou a ser parte integrante da própria mundividência europeia, colocando-se a ciência e a tecnologia como pilares do progresso e da felicidade. A primeira enciclopédia, os salões de debates, as demonstrações de experiências, mais tarde as grandes exposições universais, dirigiam-se já a grandes audiências. Portanto, hoje continuamos esta tradição de dar a conhecer ao público em geral o trabalho realizado em laboratórios fechados, recebendo também deste um feedback cada vez mais interventivo e que, naturalmente, interessa à comunidade de investigadores. Acresce, a nosso ver, a importância da presença dos investigadores mais jovens neste processo, uma vez que, tendo crescido e feito a sua formação já numa sociedade democrática e imersa em ciência e tecnologia, refrescam as formas tradicionais de comunicação.
O que mais vos surpreende, enquanto dinamizadores, nas atividades desenvolvidas pelas universidades, laboratórios e museus para esta noite de divulgação da ciência?
O empenho das instituições, dos investigadores e o entusiasmo do público. Em 2016 a NEI contou com mais de 6000 visitantes, cerca de 100 instituições participantes e de 600 investigadores envolvidos. Enquanto dinamizadores temos tido a oportunidade de verificar o entusiasmo e esforço dos investigadores em sair das universidades, das unidades de investigação, dos laboratórios e trazer ao público atividades e demonstrações que interajam com o público e que lhes permitam, durante uma noite – 6 horas, na realidade -, vivenciar e pensar como um investigador, seja por actividades hands on, seja por debates. A atenção dada a um público muito jovem – até ao 6.º ano de escolaridade – é, também, notável e exige um esforço adicional, uma vez que grande parte dos investigadores trabalha sobre temas de ponta, por vezes difíceis de explicar, e muito mais direcionados para uma audiência adulta.
As áreas de investigação são muito diversas. Que temas parecem interessar mais o público?
São aqueles que têm um impacto mais visível no seu dia-a-dia, como as cidades do futuro, mobilidade, clima, poluição. Ou então que têm uma componente de espetacularidade, pelo som ou pela cor (comida alternativa, bebidas moleculares, observação astronómica).
Olhando para o futuro, e se pudesse indicar três áreas onde são de esperar mudanças chave na forma como vivemos, a que passos científicos devemos estar atentos agora?
Por um lado a sustentabilidade – organização/inter-relação entre espaços urbanos e não urbanos, formas de mobilidade, gestão de águas, poluição. Este tema passa, obviamente, pela necessidade de alterar as profundas desigualdades económicas, sociais e políticas que marcam o mundo de hoje e que estão na base dos grandes fluxos migratórios contemporâneos e de conflitos disruptores, e mudar a forma predatória como a economia mundial lida com os recursos do planeta. É necessário, pois, uma profunda reflexão sobre os caminhos que desejamos trilhar, numa perspectiva tecno-científica, mas, também, política e civilizacional.
E em seguida?
A inteligência artificial. O nosso relacionamento com máquinas inteligentes. Este tema, que muitas vezes remetemos para a ficção científica, é muito mais real do que pensamos e obriga-nos a pensar não só sobre as definições e fronteiras entre o humano e o não humano, como também sobre que código ético regerá o nosso relacionamento com essas criações humanas. É, pois, também, uma área em que temos de pensar na dupla vertente ciência/tecnologia e sociedade.
E por fim?
A colonização espacial. Um tema ainda muito embrionário, mas que está na agenda de organizações que têm grandes financiamentos públicos e privados como a NASA e a ESA. Mais uma vez, trata-se de um tema fraturante que exige grande reflexão crítica por parte dos investigadores e dos cidadãos sobre a finitude de recursos.
Nestes últimos anos, o mote do vosso consórcio tem sido a ciência no dia-a-dia. Que experiências parecem surpreender mais o público?
Todas as atividades associadas à informática, robótica e às novas tecnologias. Este ano, um dos highlights é a atividade Coding Fest da Faculdade de Ciência e Tecnologia que oferece aos participantes a oportunidade de aprender como construir pequenos programas através de uma sequência de problemas de programação com blocos de código, num jogo em que o objetivo é ajudar um pequeno astronauta a cumprir a sua missão de consertar um satélite em órbita. Trata-se de uma introdução simples à programação. Porque consideramos que a ciência no dia-a-dia é também a ciência e a tecnologia que moldam a civilização contemporânea, trazemos a atividade Antropocénico. O que é isso?, apresentada pelo Centro Interuniversitário de História das Ciências e da Tecnologia (CIUHCT, Faculdade de Ciências e Tecnologia da NOVA e Faculdade de Ciência da Universidade de Lisboa). Juntando em torno deste tema – que é hoje um hot topic – investigadores de várias áreas que trabalham no unidade de investigação – história da ciência, história da tecnologia, engenharia do ambiente, artes, filosofia, arquitetura, comunicação social – pretende apresentar, de uma forma lúdica e muito dirigida ao público mais jovem, uma visão integrada e transdisciplinar do debate urgente que é necessário fazer sobre a relação entre a nossa espécie e o planeta.
Existe sempre a ideia de que a ciência tem de comunicar mais para garantir vontade de investimento por parte dos contribuintes. É essa a motivação desta iniciativa ou é sobretudo uma iniciativa de divulgação?
A Noite Europeia dos Investigadores (NEI), financiada pela Comissão Europeia, no âmbito das Ações Marie Curie, tem como objetivo aproximar investigadores e cidadãos, ou seja de desenvolvimento de uma cultura crítica de ciência e tecnologia. É importante sublinhar que nestes programas, eventos e estratégias se pretende fundamentalmente desenvolver uma vertente crítica, levando as audiências presentes à reflexão. Paralelamente, e isso é muito claro na NEI, o facto de se mostrar temas, muitas vezes organizados em perguntas, permite “exercer” uma interdisciplinaridade que nem sempre está presente na investigação, bem como uma colaboração ativa entre instituições. Pretende-se sobretudo estimular a participação ativa da sociedade em atividades de investigação e transmissão do conhecimento científico. Paralelamente, e como já referimos, há um esforço contínuo em consciencializar os investigadores para o papel da sociedade no progresso científico sustentável.
Sentem que é preciso mudar a forma como se ensina ciência nas escolas, até para reforçar esta a ideia de que a ciência não está apenas nos laboratórios?
A forma como hoje se ensina ciência e tecnologia nas escolas é já muito aberta para o quotidiano, que, em si mesmo, é já tremendamente habitado por ciência e tecnologia. Em termos disciplinares, não nos parece que os currículos sejam excessivamente estanques. Na realidade, e ao contrário do que por vezes se pensa, para se poder fazer investigação verdadeiramente interdisciplinar é preciso uma fase prévia de forte sedimentação disciplinar. Por exemplo nas universidades, nos laboratórios, nas unidades de investigação, a investigação de sucesso nacional e internacional faz-se em equipas que têm diferentes áreas no seu interior, cada vez mais diversificadas. É preciso sim, a nosso ver, reforçar nos alunos um espírito crítico em relação às escolhas que fazem, quer como consumidores, quer como cidadãos, quer ainda como potenciais futuros investigadores. É pois, fundamental, que os jovens percebam que o que se faz em ciência e em tecnologia é parte de um todo mais vasto e que ambas, sendo produtos humanos, dependem sempre de nós, das nossas escolhas.
O Consórcio inclui a Universidade NOVA de Lisboa, Universidade do Minho, Universidade do Porto, Instituto Universitário de Lisboa e ainda Câmara Municipal de Lisboa.