O congresso do partido em que Israel é um problema

Ó Jeremy Corbyn!, cantou-se no congresso trabalhista desta semana. É a consagração de uma estrela, com vários tabus por esclarecer.

O congresso do partido em que Israel é um problema

Jeremy Corbyn foi o primeiro líder trabalhista a não comparecer ao encontro de Amigos Trabalhistas de Israel, realizado no congresso do seu partido. Tony Blair e Gordon Brown, nos anos em que foram primeiros-ministros, marcaram presença. Este ano, a ministra-sombra dos Negócios Estrangeiros, Emily Thornberry, justificou ao embaixador israelita que Corbyn se encontrava a preparar o discurso do dia a seguir, mas o socialista estava numa festa do Daily Mirror, tablóide do qual é próximo, a metros do outro evento.

O fait-divers ganha dimensão, na medida em que as questões hebraicas quase borraram a pintura da reunião magna dos trabalhistas, esta semana. Numa conferência intitulada ‘Liberdade de Expressão sobre Israel’ em que, segundo o The Guardian, a audiência foi desencorajada a registar som, imagem e até usar a rede social Twitter, um orador convidado defendeu a liberdade para se «criticar e discutir qualquer assunto, seja o Holocausto, se sim ou não, seja a Palestina e a libertação».

Na mesma mesa, conta o Telegraph, foi sugerido que os Amigos Trabalhistas de Israel saíssem do partido, obrigando o líder local dos trabalhistas em Brighton, onde se realizou o congresso, a pedir «garantias» de medidas contra o anti-semitismo antes do regresso aos trabalhos. O número 2 de Corbyn no partido, Tom Watson, veio dar essas garantias: repudiou as afirmações ditas no painel, acrescentou que quem nega o Holocausto «não pertence ao Partido Trabalhista» e incentivou a que o episódio fosse investigado. O Holocaust Educational Trust, um fundo de sensibilização em torno da tragédia, já criticara Jeremy Corbyn por criar «terreno fértil» para o anti-semitismo no partido.

Ken Livingstone, um antigo autarca trabalhista, foi recentemente suspenso por comparar o nazismo ao sionismo. Corbyn esteve sob de pressão após estabelecer um parelelo entre Israel e o ISIS, dizendo que «os nossos amigos judeus não são mais responsáveis pelos atos de Israel que os nossos amigos muçulmanos são pelos atos dos vários ‘Estados Islâmicos’». Len McCluskey, sindicalista aliado de Corbyn, acusou a polémica de ser «uma conspiração contra a liderança». De resto, pareceu um concerto de rock. O homem que fez com que Theresa May perdesse a sua maioria parlamentar continua a ter um ano em grande. Ovações de tal maneira longas que as mãos ficam rubras de aplaudir. Cachecóis no ar. Cânticos quase futebolísticos.

«Ó Jeremy Corbyn, ó Jeremy Corbyn!». No palanque de um dos partidos políticos mais ancestrais da Europa democrática, fundador do Estado social, berço da Terceira Via de Tony Blair, Corbyn quer também, mas de uma maneira inteiramente diferente – e até oposta – assumir-se como «a nova voz do maistream político». As suas ideias – ou a sua ideologia – rompem, sim, com consensos europeus e ocidentais como a NATO e a economia de mercado, mas não são programaticamente inovadoras. «Desenvolvemos um novo modelo económico como alternativa aos dogmas falhados do neoliberalismo», garantiu Jeremy Corbyn, num discurso que encontra semelhanças no PS português às demais e continentais «alternativas à austeridade».

Onde Corbyn vai mais além é no alvo fundacional, ambicionando mesmo um «papel ativo do Estado» numa «reestruturação da economia» com um sistema estatal de bancos de investimento por região. As nacionalizações sem compensação aos proprietários são política que naturalmente faz notícia no século XXI, mas que não surgiria pela primeira vez na história do século anterior. A fronteira entre oposição a Israel e anti-semitismo também não é um dilema novo na esquerda mais ortodoxa, dentro ou fora do Reino Unido. Laura Kuenssberg, editora de política da BBC foi obrigada a levar guarda-costas devido a ameaças que lhe foram dirigidas por alegada cobertura parcial – acusação que já lhe fora feita, mas por outros partidos.
 

Cada vez menos ao centro, cada vez mais Corbyn, o que não é disfarçado: é objetivo. As virtudes e os vícios, por assim dizer, desse espectro estiveram em todo o congresso do Partido Trabalhista. O poder sindical que a Grã-Bretanha foi mitigando desde o grande confronto com a sra. Thacther até ao centro-esquerda do Sr. Blair está com ganas de ressurreição. Para isso, a dinâmica dos trabalhistas despartidarizou – ou desparlamentarizou – preferindo a força de um movimento (chamou-lhe ‘Momentum’) como plataforma agregadora. Tem resultado. Corbyn foi de ‘backbencher’ radical a possível primeiro-ministro. Os dois maiores partidos de Westminster, o seu Labour e os Tories de May, já pouco divergem sobre a ocorrência ou não do Brexit. A questão, hoje, para uns e para outros, é como manter os ‘remainers’ de ambos os lados consigo, não perdendo o eleitorado frustrado com o resultado do referendo do ano passado.

Dito de outro modo: a questão não é se vão sair ou não; é que saída vão ter. Corbyn chama-lhe «o maior teste político contemporâneo». Se deixar a UE proporcionaria um choque financeiro na City de Londres – as agências de rating vêm afiando as facas – o governo mais à esquerda das últimas décadas teria tarefa difícil. E a equipa de Corbyn também para isso se prepara. «Somos um governo em espera», autoproclamou o líder.
 
Outra divisão: a Europa

Em Brighton, cidade costeira, foi precisamente sobre o Brexit que as tensões internas sobressaíram. Os delegados do congresso próximos ao movimento ‘corbynista’ fizeram aprovar uma lista de temas a debater que colocava oito prioridades à frente da saída da União Europeia. A votação causou desagrado na ala mais europeísta do partido, que é a favor da permanência no Mercado Único. Chris Leslie, deputado trabalhista, considerou o sucedido «ridículo», visando a «necessidade de debater o Brexit».

Corbyn sossegou as hostes, colocando à votação uma moção conjugada em mais de 11 horas com uma «política oficial» para a saída do Reino Unido, não assegurando (nem deixando de assegurar) a mencionada permanência no mercado comum, mas prometendo que nunca apoiariam a constituição de uma fronteira ‘dura’ à imigração europeia – problemática novamente referida no seu discurso final, em que criticou o Governo conservador por não criar condições de segurança para os três milhões de cidadãos da UE que trabalham no Reino Unido. O controlo no arrendamento e o foco na habitação foram apelo às gerações mais jovens. Sobre a polémica da semana, com Israel, nem uma palavra.