Portugal vai ter lista negra das empresas que permitem assédio

Lei mudou este domingo. Trabalhadores passaram a estar mais protegidos e empresas com mais de sete trabalhadores vão ter de implementar um código de conduta.

Em Portugal, 16,5% da população ativa já foi alvo de assédio moral no trabalho pelo menos uma vez ao longo da vida e 12,6% já sofreu assédio sexual. Significa que pelo menos um em cada dez trabalhadores já esteve exposto a uma destas situações pelo menos alguma vez desde que entrou no mercado de trabalho. A partir deste domingo, a nova legislação promete tolerância reduzida. Prevê mesmo que o país passe a ter uma lista negra das empresas complacentes com este tipo de casos.

As estatísticas fazem parte de um estudo de 2016, no qual foram inquiridas 1801 pessoas, um trabalho coordenado pela socióloga Anália Torres e publicado pela Comissão Para a Igualdade no Trabalho (CITE). São o retrato mais recente da realidade que a nova legislação pretende prevenir. A prática de assédio no trabalho passa a constituir uma contraordenação muito grave e são várias as implicações.

Rita Garcia Pereira, advogada especialista em Direito do Trabalho, explica ao SOL  fala de um passo «bastante importante» e assinala os principais pontos a ter em conta.

Entre eles, está a possibilidade de os trabalhadores vítimas de assédio serem indemnizados, «designadamente quanto à admissibilidade de recurso ao regime dos acidentes de trabalho e de doenças profissionais, tendo sido consagrada uma regra nova, no sentido de os empregadores ressarcirem a Segurança Social dos montantes avançados por esta».

Além disso, passa a ser obrigatório, para as empresas com sete ou mais trabalhadores, «terem um código de conduta, o qual deve proibir estes tipos de comportamento». Caso o empregador tenha conhecimento de alegadas situações de assédio no trabalho e não instaure um procedimento disciplinar, incorre numa contraordenação grave. A coima pode ir até 9690 euros. E as empresas que forem condenadas passarão a constar numa lista negra que ficará disponível no site da Autoridade Para as Condições no Trabalho (ACT).

Finalmente, na nova lei facilita-se, também, «a produção de prova testemunhal, através da notificação das testemunhas e da proteção das mesmas, presumindo-se como abusivo o seu despedimento até um ano sobre o respetivo depoimento».

Rita Garcia Pereira assinala, porém, que a nova lei ainda peca por defeito. Isto porque não prevê a inversão do ónus da prova que «existe apenas para o assédio fundado em discriminação».

Na prática, se um trabalhador invocar que é alvo de assédio, «mas não alegar que é discriminado perante os demais – designadamente por ser o único na sua categoria ou por não ter com quem se comparar –, tem de provar os factos, os danos e o nexo de causalidade entre os factos ocorridos e os danos».

Caso a nova lei previsse a inversão do ónus da prova, o trabalhador teria «apenas de provar os factos, competindo à empregadora a demonstração de que existem factos objetivos que justifiquem a diferença de tratamento».

Que tipo de comportamentos estão em causa? A definição legal é abrangente. Segundo o n.º 1 do artigo 29.º do Código do Trabalho, «entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador».

 

Um problema escondido?

Entre 1 de janeiro de 2010 e 31 de dezembro de 2016, a Comissão Para a Igualdade no Trabalho e no Emprego (CITE) recebeu 12 queixas de assédio moral, 30 de assédio sexual e quatro de assédio moral e sexual, números que ficam bastante aquém da realidade de assédio estimada no país. Em 2016, a mesma entidade recebeu quatro queixas relativas a assédio moral e nenhuma queixa relativa a assédio sexual nem a assédio moral e sexual.

«Os exatos números do assédio serão muito superiores aos que constam das estatísticas», sublinha Rita Garcia Pereira, apontando a instabilidade laboral como uma explicação possível. «Ainda vivemos sob o espetro de que é melhor um mau emprego do que nenhum emprego». Helena Sampaio, psicóloga e assessora técnica da direção da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), tem a mesma leitura e acrescenta que «como se trata de uma matéria que por vezes é difícil provar, as vítimas, dentro do possível, vão gerindo o dia-a-dia e as situações conforme sabem».

Helena Sampaio lembra ainda que, na maioria dos casos, «as pessoas que praticam estas ações negativas têm o cuidado de as praticar de forma privada». Por isso, muitas vezes, as vítimas não conseguem provar o assédio recorrendo a testemunhas. Outros casos há em que «alguns comportamentos ou revelações mais intimidatórias de cariz sexual podem ser registados através de e-mails ou mensagens», afirma, o que pode tornar mais fácil a denúncia.

À semelhança da CITE, a psicóloga da APAV diz que a associação «praticamente» não recebe queixas e aponta como possíveis justificações, para além da dificuldade em provar, «a vergonha e o sentimento de culpa». Mas sublinha que a equipa está preparada para lidar com estas situações, independentemente de as vítimas terem ou não condições para avançar com um processo judicial. Informam as vítimas sobre «procedimentos legais» e «os seus direitos», podendo ainda «articular com outras entidades, como a CITE ou a ACT» e concedendo «apoio psicológico de forma gratuita e confidencial».

Helena Sampaio assinala que esse apoio pode ser determinante, uma vez que o assédio no trabalho pode ter efeitos particularmente nefastos a nível psicológico, «como angústia, algumas perturbações psicossomáticas, a redução da produtividade e até o comprometimento da própria eficácia do trabalho».

O SOL contactou a ACT para obter informações sobre queixas e denúncias junto do regulador das condições de trabalho no país, bem como de estatísticas, mas não recebeu informações até ao fecho desta edição.

 

A importância da educação

O assédio, em particular o assédio sexual, é uma problemática à qual a União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) não está indiferente há já vários anos.

Em 2011, a UMAR promoveu a Rota dos Feminismos Contra o Assédio Sexual. Sob o tema «Assédio Sexual no espaço público e no trabalho», a associação passou por Faro, Beja, Setúbal, Lisboa, Viseu, Coimbra, Porto e Braga com atividades culturais e performativas.

No âmbito desta iniciativa, a UMAR fez dois questionários para tentar perceber melhor os contornos do fenómeno no país. «Uma grande percentagem dos inquiridos revelou que já tinha sido vítima de assédio sexual na rua, no trabalho ou na academia», diz Maria José Magalhães, da UMAR. O questionário revelou também que «o assédio sexual está tão generalizado e tão naturalizado, que a grande maioria das pessoas confundia assédio sexual com sedução, como se fosse uma forma de iniciar um flirt».

Entretanto, a associação desenvolveu outros projetos e, atualmente, em conjunto com a Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, dinamiza o projeto Bystanders – Developing bystanders’ responses to sexual harassment among young people. Financiado pela Comissão Europeia, este projeto internacional envolve entidades de outros três países – Reino Unido, Malta e Eslovénia. O objetivo, até agosto de 2018, é conceber e implementar um programa de prevenção em contexto escolar sobre assédio sexual, com estudantes e profissionais, nos quatro países.

Com foco nos jovens testemunhas de assédio, o projeto pretende, além de «combater a naturalização do assédio sexual», ensinar «os jovens a atuar». A representante da UMAR frisa que o assédio sexual é «um problema histórico e social» e lembra que afeta não só mulheres, mas também homens. A representante sublinha que esta formação, apesar de não se focar no assédio em contexto laboral, acaba por ter repercussões um dia mais tarde, quando os jovens crescem e «entram na sociedade ativa».

 

*Texto editado por Marta F. Reis