Pierre Rosanvallon. “As desigualdades na nossa sociedade são altamente toleradas”

Historiador francês argumenta que o debate sobre a igualdade não depende apenas da distribuição da riqueza ou das estatísticas e sugere uma abordagem mais cívica

Privou com Mário Soares, Jacques Delors e Michel Rocard, foi presença assídua em Portugal no pós-25 de Abril e é um dos teóricos da chamada “segunda esquerda” francesa dos anos 70. Tinha, portanto, o perfil, o conhecimento, os contactos – e os convites! – para se tornar um político de carreira. Mas optou pela via académica, decidido a lançar as raízes para uma nova vivência intelectual em França. Na véspera da sua intervenção no debate do passado dia 30, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS), “Em que pé está a igualdade?”, o historiador francês Pierre Rosanvallon conversou com o i sobre a desigualdade, a crise financeira, a eleição de Emmanuel Macron e as suas escolhas de carreira. 

Nos países da OCDE, a média de rendimentos dos 10% mais ricos é dez vezes superior à dos 10% mais pobres e o atual fosso entre ricos e pobres é o maior dos últimos 30 anos. Tendo em conta este cenário tão negro, como é que um académico promove o debate sobre a igualdade?

A primeira questão a ter em conta é a de que a noção de desigualdade é muito ampla. Como se mede? Deu-me o exemplo dos 10%. Mas e se considerarmos uma só pessoa, ou 0,001 de pessoa? A diferença, aí, não será de 1 para 10, mas de 1 para 1000. Em segundo lugar, o problema da desigualdade é também uma questão de distribuição. Mas, mais importante do que tudo isto, é um problema que deriva de novos tipos de “super-ricos”. A maior preocupação dos dias de hoje não tem tanto a ver com a diferença entre os rendimentos do cidadão comum e, por exemplo, de um professor universitário – já que essa diferença não se alterou muito nos últimos 20 anos -, mas com a enorme disparidade de rendimentos entre um simples trabalhador e um CEO de uma empresa ou um artista. Nos anos 60 e 70 havia um homem nos EUA a quem chamavam o “Papa da gestão”, Peter Drucker, que defendeu que a diferença entre o salário do trabalhador mais mal remunerado e o do CEO deveria basear-se numa proporção de 1 para 20. Foi considerado normal na altura. Hoje, já não é assim. E o principal problema até nem é a medição das desigualdades, mas o facto de serem altamente toleradas. Não é só uma questão de distribuição da riqueza, mas também de acesso a determinados bens, produtos ou territórios. Estamos a olhar em demasia para a desigualdade do ponto de vista da distribuição e das estatísticas. Isto é muito restritivo. 

Não acha que este debate ainda tem pouca notoriedade junto da opinião pública?

Essa é uma excelente questão porque, na verdade, falamos todos os dias de desigualdades. O problema é que, mesmo considerando o tema como algo desagradável, existe a tal tolerância em relação à realidade. Veja-se o salário de um CEO bem remunerado de uma grande empresa europeia: deve ganhar entre 5 a 10 milhões de euros ao ano. Se pensarmos no salário médio de um futebolista, verificamos que é bastante mais elevado. Alguns recebem dez vezes mais do que o CEO. Muitos cidadãos consideram que o salário do CEO é demasiado elevado quando comparado com o de um trabalhador comum, mas ninguém parece considerar um escândalo o caso dos jogadores de futebol. E há cerca de um mês tivemos aquele combate de boxe em Las Vegas… 

O combate entre Floyd Mayweather e Conor McGregor [em agosto]…

Exato! O vencedor ganhou centenas de milhares de dólares a cada 30 minutos!

Há quem diga que se tratou de uma burla…

Claro, mas ajuda a perceber a dimensão das desigualdades na nossa sociedade e a forma como são altamente toleradas. A teoria económica do “winner takes it all” está a ser aceite por todos. Vivemos em sociedades cada vez mais individualistas, onde as desigualdades oriundas da responsabilidade, do talento e do mérito são relativamente bem toleradas, e isso é problemático. Por vezes, no setor dos fundos de investimento, há pessoas que chegam a receber um bilião por ano, uma quantidade enorme de dinheiro que nem sequer vem do talento ou do mérito, mas da alta percentagem imposta sobre todo o dinheiro recolhido. E isso é tolerado! É por isso que esta conferência [da FFMS] coloca a questão certa: como redefinir a igualdade? Não se foca no debate sobre o porquê das desigualdades serem cada vez mais elevadas, mas na reconsideração da importância da igualdade para o mundo que queremos. Em diferentes momentos da história das nossas sociedades ocidentais, a igualdade foi considerada algo muito valioso. Depois das duas guerras mundiais, havia gente conservadora nos EUA a defender que até os dólares deviam morrer pelo país [risos]. Quem é que defende, atualmente, que os euros devem ser gastos no repensar do tecido social? 

Que passos podem ser dados – em termos de intervenção política, cívica, de educação, tributação, etc. – para reduzir essas disparidades existentes?

Essa redução pode ser procurada através da imposição de um sistema de meritocracia que pressuponha igualdade de oportunidades. De vários tipos: igualdade no acesso a determinado bem, igualdade nas oferta de determinado património no início da vida, igualdade na redistribuição ou taxação… Mas também se deve atuar no campo das políticas de igualdade. 

Tais como?

Na época da Revolução Americana [1776] e Francesa [1789], a igualdade significava qualidade de vida social. Não era uma simples questão de redistribuição, mas da capacidade de vivermos como iguais. O filósofo John Stuart Mill dizia que a igualdade entre o homem e a mulher se verifica quando ambos vivem como seres iguais. Não é apenas uma questão de dinheiro, mas de uma partilha de elementos de compreensão e de elementos comunitários. As políticas de igualdade podem ser promovidas através do desenvolvimento da igualdade per se, mas essencialmente através de uma atuação positiva em matéria de relações sociais e de incentivo a uma existência enquanto cidadãos comuns. Quando há alguém que vive numa sociedade demasiado segregada, essa realidade não tem apenas que ver com riqueza, mas com o facto de essa pessoa não estar verdadeiramente a viver no mesmo planeta que nós. Nos EUA é interessante verificar que a segregação começou depois da Guerra da Secessão [1861-65]. Todas as políticas segregacionistas só aconteceram cerca de 20 anos depois do conflito. Os negros tornaram-se cidadãos iguais aos brancos e, por isso, estes decidiram implementar políticas discriminatórias para viverem em territórios e sociedades diferentes. Hoje em dia existem cada vez mais elementos de segregação e separatismo e um medo cada vez maior daqueles que são diferentes. São fatores de desigualdade.

Que se agravaram com a crise económica…

Sim, mas penso que o termo crise já não é adaptável, uma vez que vivemos um novo tipo de capitalismo, e não uma verdadeira crise económica. Repare que esse termo já é usado desde meados dos anos 70. Uma crise que dura há 50 anos não pode ser considerada uma verdadeira crise, mas um novo regime económico ou uma revolução antropológica, uma revolução assente na ideia de que a participação do indivíduo na produção de riqueza é absolutamente central. Antes disso, a produção de riqueza era considerada um produto de boa organização, do ponto de vista de uma verdadeira empresa. [John] Galbraith – um grande pensador do capitalismo – dizia que uma empresa é uma máquina bem organizada e a sua riqueza depende da qualidade dessa engrenagem. Hoje em dia, a riqueza é produzida pela inovação e por contribuições específicas, já que o trabalhador comum deixou de ser apenas uma peça, mas alguém que intervém e participa, com elementos de personalidade. A força laboral de [Karl] Marx tem hoje uma outra natureza. Por outro lado, essa evolução não se verificou no campo da sociabilização. Vivemos em sociedades cada vez mais fragmentadas.

Vê uma ligação entre essa realidade e a disseminação de movimentos políticos antissistema?

Sim, porque ela também resulta de um enfraquecimento do sentimento democrático e do sentimento de pertença a uma mesma nação. Este último já não se baseia no facto de vivermos como iguais dentro de um território, mas numa identidade negativa, do “nós” contra os “outros”.

Como viu a eleição presidencial de Emmanuel Macron? Acredita que resultou apenas de circunstâncias políticas muito particulares ou entende que se tratou de uma verdadeira revolução política?

Essas circunstâncias foram a revolução. Porque [a eleição] marcou o fim da política estruturada nos partidos políticos…

Acha que o sistema político francês mudou para sempre?

Sim, mas foi uma mudança que se desenrolou passo a passo. Esta eleição apenas provou que a política já não se baseia na representação, mas na identidade. Um partido político é um grupo alargado de cidadãos que representa um determinado interesse social ou territorial e tem origem numa realidade social. Estes grupos sociais e territoriais organizam-se e fortalecem-se em congressos, cargos nacionais e com líderes políticos. Já a política de identidade é totalmente diferente. Aí é o líder que pergunta: quem me quer seguir? Deixa de falar em “classes sociais” e fala em “população”. A política deixou de se basear exclusivamente na sociologia e vem agora diretamente do topo. Macron é um bom exemplo dessa mudança, mas não é o único. Há ainda o caso de Jean-Luc Mélenchon [candidato presidencial da extrema–esquerda] e de Marine Le Pen [candidata presidencial da extrema-direita]. Macron fez parte desta revolução.

Como vê a perda de popularidade de Macron nos primeiros meses de presidência?

Há que diferenciar a presidência de Macron em matéria de política externa – bastante clara em relação à União Europeia, por exemplo – e interna. Nesta última, Macron começou por propor uma série de mudanças estruturais, pelo que ainda não podemos ver o enquadramento geral. Há um ano era visto como um socialista liberal mas, nestes primeiros meses, ainda não vimos essa faceta. Até porque decidiu virar-se primeiro para a direita, por motivos estratégicos. Penso que ainda é muito cedo para avaliar a sua presidência em termos de política interna. 

Falando agora um pouco de si, foi um ativista de renome nos anos 70 e 80. Porque optou pela carreira académica em detrimento da política?

Teria feito todo o sentido seguir uma carreira política, até porque me propuseram um lugar no parlamento. Era muito amigo de Michel Rocard [ex-primeiro-ministro socialista] e trabalhei com Jacques Delors [ex-presidente da Comissão Europeia] em meados da década de 1970. Quando, em 1981, a esquerda subiu ao poder em França, surgiram oportunidades, mas decidi não caminhar nessa direção. Havia muita gente à minha volta desejosa de entrar na política e havia muita competição, mas eu estava suficientemente satisfeito para não me sentir obrigado a competir e, por isso, entendi que era mais imperativo trabalhar de um ponto de vista intelectual. 

Era capaz de se aventurar, se amanhã tivesse algum convite?

Não, não! Isso já acabou! Acredito que a contribuição intelectual para a política é igualmente importante. E não somos assim tantos a fazê-lo. Sinto-me mais útil a trabalhar no meio académico e entendo este trabalho como uma contribuição para o entendimento cívico. Tento não ser apenas mais um académico, mas um intelectual. O académico limita-se a lidar com as questões e os debates atuais dentro do meio; já o ponto de partida do trabalho do intelectual assenta em questões sociais ou históricas. 

Quando concebeu o grupo de reflexão “La République des Idées”, em 2002, tinha como objetivo refundar a vida intelectual em França e na Europa. Quinze anos volvidos, em que estado se encontra essa sua missão?

Publicámos cerca de 100 livros, que tiveram um enorme sucesso e foram importantes para o debate público. Publicámos, por exemplo, um livro de Thomas Piketty [“Pour une révolution fiscale. Un impôt sur le revenu pour le XXIe siècle”, 2011]. Mas há que ter a consciência de que o trabalho intelectual envolve um enorme esforço e necessita do contributo de várias pessoas. Eu sou apenas uma peça nesse trabalho coletivo.