Miguel Palma: “Vendi tudo para continuar a fazer arte”

Fascinado por aviões, automóveis e mecanismos, Miguel Palma trabalha num espaço que espelha bem esse universo de obsessões. De momento, está a preparar uma exposição individual de desenhos seus no MAAT, ponto de partida para uma conversa em que falou também do preço dos sonhos e do seu amor pelas árvores

Miguel Palma: “Vendi tudo para continuar a fazer arte”

Depois de fazer uma travessia do deserto, Miguel Palma terá um 2018 e um 2019 em cheio, com duas exposições individuais nos dois mais importantes museus de arte contemporânea de Lisboa: o MAAT e o Berardo. A primeira, já em março, será inteiramente dedicada ao desenho e está agora a ser preparada.

Numa mesa do ateliê encontra-se um dos trabalhos que vai apresentar: uma gigantesca superfície de papel branco – que Palma compra em rolos – ainda em fase embrionária. A escala é tão vasta que, para obter uma ideia do conjunto, o artista sobe de tempos a tempos a um escadote posicionado no canto da sala.

Curiosamente, o desenho não é a disciplina que mais associamos a Miguel Palma, que fez o seu debute em 1989 e se afirmou ao longo dos anos 90 e 2000 com esculturas, instalações, vídeos e performances. Uma das suas obras emblemáticas é Cofre com Mil Contos (em que colocou efetivamente esse valor em notas no interior de um cofre, entregando o código ao proprietário); outra é Projeto Aríete, em que conduziu pela Europa fora um Porsche 911 equipado com o cockpit de um caça, parando em museus e centros de arte para, vestido com um fato de piloto, apresentar o seu trabalho.

O ateliê de Palma é povoado por uma miríade de miniaturas de carros, bonecos, aparelhos elétricos, ferramentas, livros ilustrados e outra parafernália. Há objetos improváveis, como uma peça metálica que o artista aproxima do nariz como faria um apreciador de vinho que acaba de abrir uma garrafa rara. «Andava há um mês à procura disto. É uma bela peça, não é?», pergunta. Mas de que se trata afinal? De «um amortecedor de avião».

De onde vêm aqueles bancos castanhos de veludo que tem à entrada do ateliê?

Esses assentos pertencem a um carro que um galerista me deu em tempos – ‘deu’ quer dizer, trocou por obras -, um Rolls Royce. O que fiz ao Rolls Royce foi esventrá-lo por completo e retirar-lhe tudo o que era de riqueza, desvalorizá-lo enquanto automóvel e transformá-lo numa escultura.

Onde está a carcaça?

Está num armazém grande onde tenho o ‘material pesado’. Depois de retirar toda esta parafernália de gadgets, de coisinhas, os dourados, aquela menina da frente, passou a ser um carro pobre, e isso deu-me bastante gozo. Tudo aquilo que era de ‘joalharia’ do carro foi colocado na galeria como peças de arte, e o carro em si estava à porta da galeria. Achei que o carro até ficou bastante melhor, mas isso sou eu que não gosto particularmente de Rolls Royce.

Por ser ostensivo?

Sim. Em Inglaterra é diferente, porque eles constroem, é um país industrial e os donos relacionam-se com o carro de outra maneira, muitos deles até trabalharam nas fábricas da Rolls Royce.

Ainda tem aquele [Ford] Mustang em que costumava andar no dia-a-dia?

Tive-o alguns anos, mas acabei por vendê-lo na altura da crise. Vendi o carro, vendi a casa, vendi tudo para continuar a fazer arte. Os sonhos têm um preço. Se gosto disto e quero fazer arte, há coisas de que tenho de abdicar. A crise tocou a muita gente e, quando me tocou a mim, foi o Mustang e foi a casa. Agora estou a recomeçar. Uma pessoa tem de saber cair e saber levantar-se. Isso também dá algum gozo.

Que volumes são estes aqui em cima da mesa?

Comprei agora esta coleção de aviação – tudo o que tenha a ver com aviação dos anos 30, motores, aviação de guerra, etc. Há dias em que não faço mais nada – estou só a ver revistas, a ler artigos, a selecionar coisas que me interessam e que posso usar no meu trabalho. Outra coisa de que gosto são estas coleções de revistas de mecânica popular, que nos anos 50 eram traduzidas e vendidas em Portugal.

Ensinavam a fazer mecanismos?

Ensinavam, mas na altura imaginava-se que em 1978 as pessoas já sairiam de casa de helicóptero. Acho estes assuntos deliciosos. Acreditar é a coisa mais ingénua e mais bonita do mundo. Naquela época, a pessoa comprava um Black & Decker e vinha um livro ‘faça você mesmo’. Em miúdo eu passava a vida a ler aquilo. E pensava: ‘Acho que já sei fazer uma casa, acho que sei fazer um carro’. Dava a sensação de um saber um bocado universal, mas era tudo falso. Se fizesse a casa, a casa caía, se fizesse um carro, o carro não andava.

Onde compra tudo isto?

Tenho fornecedores. Pessoas que sabem deste meu interesse e entram em contacto comigo: ‘Tenho um motor dos anos 30 da Meccano, metes lenha e aquilo trabalha’. Começo logo a imaginar coisas, a sonhar com aquilo. ‘E quanto é que custa?’. ‘4500 euros’. 4500 euros por um brinquedo dos anos 30… Mas sabem que eu tenho estas paixões e estão constantemente a aparecer com livros ou telefonam. ‘Vim aqui a uma feira, encontrei uma bola de chumbo, só me lembrei de ti’. E lá vou eu para Sacavém. A minha vida passa muito por sair do ateliê, falar com estes colectores, portanto conheço tipos muito mais doentes do que os artistas. Há quem colecione espátulas desde o Paleolítico à atualidade!

Estava a dizer-me que via essas revistas e pensava ‘Já sei fazer uma casa, ou um carro’ – e não sabia. Mas sabe como funciona um motor, por exemplo?

Consigo ver se o motor está com um grande problema, consigo cheirar o escape, consigo ouvir as válvulas a bater, esse tipo de coisas mais básicas. Normalmente quando estou a conduzir não oiço música – oiço música com o carro parado – porque gosto de ouvir o motor. Sinto-me parte da máquina e só isso já é música.

Disse-me uma vez que o seu fascínio pelos aviões tinha a ver com o facto de morar perto do aeroporto e de ver os aviões a descolar e a aterrar da janela do seu quarto. Consegue situar a origem do seu fascínio pelos automóveis?

Não… Em termos familiares o gosto pelos carros sempre foi algo normal. Não havia nada de particular. Acho que é mais por não saber como as coisas funcionam e ter essa curiosidade e… quase frustração.

Embora diga que não sabe fazer um carro a verdade é que em 1993 apresentou um carro construído por si em Serralves e foi a conduzi-lo até ao Porto!

Quando fiz esse carro precisei de um engenheiro, precisei de um mecânico, e tive um pequeno grupo de colaboradores para me ajudar. Sozinho não o conseguiria fazer. Depois, quando o conduzi de Lisboa para o Porto, ouvia barulhos e lembrava-me perfeitamente dos parafusos e das soldaduras que tinha feito.

Esse carro estava homologado? Podia andar na estrada?

Não, e tinha todas as razões para não ser homologado: falta de segurança, poluente… Enquanto automóvel seria quase uma homenagem ao Voisin, que era um grande desenhador de automóveis, e que antes dos automóveis desenhou aviões lindíssimos. Um tipo ao nível do Corbusier – aliás eles eram amigos, e os carros dele eram fotografados em frente das casas do Corbusier porque eram modernistas, não eram calhambeques.

O Corbusier concebeu a casa como uma ‘máquina de habitar’, portanto havia paralelos…

Sim, havia uma ligação. E um grande respeito pelo trabalho do Voisin. Há um lado pioneiro nesse carro, de começar do zero, fazer, construir e funcionar. Consigo imaginar perfeitamente um dos primeiros tipos que construiu um automóvel ou um avião a sentir isso… São momentos do início, da origem da construção e da criatividade.

Estes carrinhos todos que aqui tem são para utilizar em obras de arte ou gosta dos carrinhos em si e não pelo uso que podem ter?

A maior parte deles pertence a uma instalação que fiz em 2009 e que se chamava Memorabilia. Era uma coleção exaustiva, compacta, onde estavam centenas de brinquedos – automóveis, motas e tudo o que tivesse a ver com o universo da mecânica automóvel. Curiosamente, se pensarmos no automóvel é quase um vírus no meio deste organismo que é o planeta, mas não deixa de ser maravilhoso. Tenho essa consciência, sei que gosto de coisas que não são as mais saudáveis para a natureza, mas também falo da natureza nas minhas obras e gosto muito de árvores.

Isso não será uma forma de aliviar a culpa por gostar de coisas poluentes?

Eventualmente sim. Em várias alturas da minha vida, sempre que tive a possibilidade de viver numa casa com um terreno, a minha prioridade foi plantar árvores. Aliás, há mais de vinte anos decidi aderir a um projeto que se chamava 2080 e tornar-me agricultor.

Mas tinha-se ‘zangado’ com a arte?

Não, tinha esse projeto em vista para a florestação, parecia-me uma tarefa importante e imaginava-me a fazer as duas coisas que mais gosto. Até tirei aqueles cursos da União Europeia para ser empresário agrícola. Todos os dias fazia 200 km de carro para vir a ser um agricultor.

Fez isso convictamente?

Sim, queria estar fora da cidade. Depois o projeto acabou por não seguir em frente e a minha vida mudou, mas poucos anos mais tarde, já a viver no campo, plantei centenas de árvores, e isso foi algo que me trouxe uma grande felicidade. Acho que a palavra é mesmo essa.

Que espécies plantou?

Carvalhos, faias, choupos, alguns plátanos, cedros. A minha intenção era criar sombra e criar verde, até porque quando cheguei a esse terreno, no meio da serra, a agência imobiliária que mo vendeu tinha cortado todas as árvores para que o potencial comprador não se assustasse com o lado mais sombrio que a serra tem. Isso fez-me pensar.

O que é feito desse terreno?

Desde há um ano que já não é meu. Mas estou numa fase da vida em que espero dentro de um ano poder plantar árvores num novo terreno. Será um sítio onde poderei trabalhar e não ter tanta solicitação. No meio disto tudo gostava de ter uma sala sem nada para limpar a cabeça, e acho que vou ter isso.

Mesmo assim já não tem a casa e o ateliê juntos, como antigamente.

Neste momento são dois andares distintos – aqui é só ateliê e lá em cima é só casa. E é mais fácil. Consigo fechar a porta e não ver o trabalho – mesmo para a família torna-se menos presente.

Os seus filhos, quando eram pequenos, não ficavam doidos com estes brinquedos todos?

Eles nasceram nesta confusão. Houve uma altura em que reagiam um bocado contra isto. Achavam de mais, nessa altura em que a casa era ateliê e o ateliê era a casa. Hoje em dia gostam e quando trazem os amigos visitam o ateliê, mas já têm outras idades. Ali atrás está uma coisa que diz ‘PAI’. Isso foi a minha filha mais nova que fez quando tinha oito anos. [mostra um desenho infantil] Sou eu a trabalhar: a tesoura, as fita-colas, um lápis…

Há pouco mostrou-me um desenho que ainda está a começar e que vai apresentar numa exposição individual no MAAT em 2018. Normalmente, pensamos no desenho como traços sobre o papel, mas o Miguel parece que aborda o desenho como uma montagem, em que vai colando, sobrepondo, juntando recortes como quem junta peças de um mecanismo.

Os meus desenhos começam normalmente com imagens que me interessam. De planetas, por exemplo. Esta tem a ver com Marte. Do outro lado está a origem do homem, que veio de África. Por vezes pinto por cima, escrevo, invento histórias sobre determinadas imagens, e começo a inventar uma sequência, uma narrativa qualquer. Há um lado de organização quase museológica, mas sem um critério. A minha catalogação é mais feita por instinto.

Como uma enciclopédia individual?

É exatamente isso. Uma enciclopédia desordenada e com o botão dos canais avariado. Quando procuro um assunto encontro outro, e esse outro passa a ter também importância. Em miúdo uma das coisas que mais me distraía eram as enciclopédias. Passava tardes à procura de determinados assuntos e explicações, ligações e ilustrações. Hoje também faço isso, com a diferença de que tenho liberdade para recortar. Sou um assassino de livros, um pesadelo para os colecionadores, aquele tipo que esventra a peça de que eles andam à procura há 30 anos. Mas não me importo, faço isso mesmo, corto as revistas, os livros, e depois integro no meu trabalho.

Ao mesmo tempo, aquele desenho, pela escala, faz lembrar um mapa…

Sim, sim. É como aquelas imagens da guerra, em que se vê os generais debruçados sobre uma mesa. E aqui também há uma estratégia de ocupação. Neste momento esse desenho ainda é um campo de batalha…

E nunca faz desenho mais convencional, com lápis ou caneta?

Tenho alguma facilidade na representação de um objeto através do desenho. O desenhar para mim não é um desafio. Aparece aqui e ali, mas um risco quase infantil. Essa forma ‘mal feita’ é uma maneira de criar distância em relação àquilo que consigo e sei fazer. Porque desenhar e ser perfecionista era natural em mim, tinha essa capacidade, essa destreza, e não gostava.

Desde miúdo?

Sim, desenhava muito. Mas não me interessa fazer um desenho em que vou mostrar as minhas capacidades, não é por aí. Sinto-me muito mais próximo de uma imagem de que me aproprio e altero, mas à minha maneira – repinto, recorto e transformo. É nesse processo que está o meu diálogo com o desenho, mais do que na representação.

E não gosta de pintar?

Sinto uma frustração em relação à pintura. Não tenho problemas em dizer. Ao contrário do desenho, na pintura, para mim, deve existir ilusão, e essa ilusão não consigo criá-la. Sinto-me muito mais satisfeito quando construo um objeto físico, uma coisa que ocupa um determinado lugar no espaço. Adoro pintura e sempre que vejo uma exposição fico com vontade de pintar, por isso a pintura será sempre um problema para mim.

Já me disse que uma coisa que lhe interessa são os planetas, mas também a exploração espacial, e mostrou-me uma imagem de Marte num desenho seu. Pelo que vemos das fotografias, estes planetas devem estar bastante próximos do que é um deserto, porque não há árvores, não há vida, só areia ou pedra. Quando esteve no deserto do Arizona sentiu-se um pouco como um astronauta, mas no nosso planeta?

Sim, senti-me um astronauta por variadíssimas razões. A primeira foi a aridez – as condições menos apropriadas para a vida estão ali. Por alguma razão é o lugar onde os programas espaciais se preparam. Desde o início que a NASA treina ali e é ali que os futuros astronautas continuam a preparar-se. Naquele lugar eu senti essa presença do homem enquanto pioneiro num lugar que não conhece, inóspito, mas também a paisagem, e nessa paisagem existe uma solidão, o silêncio, o vazio, a secura, a monotonia, isso é muito apelativo e muito abstrato.

O fato que fez foi inspirado no dos astronautas?

Trabalhei com estudantes de engenharia aeroespacial, com os futuros astronautas, e esse fato foi feito para respirar. Funciona tudo, quando se liga as ventoinhas fazem o fato inchar.

É um fato para sobreviver ao calor?

Sim, mas na verdade não faz grande coisa porque ali as temperaturas chegam quase aos 50 graus.

Há quem tenha experiências místicas no deserto. Viveu alguma coisa parecida?

Estive lá em diversos períodos durante um ano e tal, e conheci relativamente bem aquela natureza. Acabava por me refugiar muito no meu ateliê, onde tinha um bom ar condicionado.

Ficava num local isolado ou numa cidade?

Na cidade. Em Phoenix andar a pé não é o normal. As pessoas movimentam-se de carro, com o ar condicionado bem forte. Ninguém faz 300 ou 400 metros a pé para ir à mercearia sem levar um bom chapéu e uma garrafa de água. Porque realmente não é o lugar para o homem. Conduzi, andei a pé, senti o silêncio, aquela aridez, aquele ar, aquele pó, aquelas tempestades, mas não posso dizer que tenha tido alguma experiência mística.

Outra referência muito presente na sua obra são os aviões. Escreveu num desenho seu que há um antes e um depois do 11 de setembro na aviação. Porquê?

No passado, o avião era o grande pássaro que transportava as pessoas. Já havia alguma carga bélica, sobretudo quando pensamos na II Guerra, mas havia o avião militar e o avião civil. O avião civil não era uma arma, representava o fascínio de chegar longe, voando. Dificilmente se encontrará nos próximos anos coisa mais bela do que isto. Mas em relação ao 11 de setembro, sei que anteriormente as pessoas visitavam muito os cemitérios de aviões. Sempre houve acidentes de aviões, e sabemos que quando um avião cai é raro haver sobreviventes – mas daí a um avião despenhar-se contra um edifício que se pretende eterno, é muito diferente. E a verdade é que depois do 11 de setembro os cemitérios de aviões deixaram de ser visitados. E compreende-se.

Embora haja todo um lado futurista no seu trabalho, o digital não o interessa?

Não é não me interessar. Não consigo, não me apetece. A maior parte da música que oiço é em vinil. E desde há 20 anos oiço CD, mas gosto mais do vinil, do ritual. Quando estou a trabalhar e tenho as mãos com tinta o CD fica em loop para não ter de lá ir. Há muita coisa que nem quero saber, mas tenho muita paciência e gosto de procurar colas ou resinas, por exemplo. Sou capaz de passar um dia inteiro a testar colas, interessa-me mais saber colar e ver como os elementos reagem entre si. Digitalmente se calhar conseguia fazer o mesmo, mas não seria aquilo, seria a imagem daquilo.

Gosta desse lado físico, material?

Claro. No caso do meu trabalho gosto do objeto, gosto da presença física, seja de um papel, seja de uma placa de chumbo.