Os cheques em branco que deixaram Sócrates em pânico

Uma 1.ª página do SOL em abril de 2013 desencadeou uma série de telefonemas entre Sócrates e os seus primos – não podiam sair notícias que suscitassem curiosidade em relação aos seus negócios. Convictos de que conseguiriam controlar a imprensa, acreditavam que a solução passava por silenciar a autora do artigo.

Em abril de 2013, um agricultor de Coruche faz uma estranha descoberta: de uma das gavetas de uma escrivaninha velha que ali estava há anos caem 1.300 cheques em nome de José Sócrates e outros familiares.

O SOL faz manchete com o caso, mostrando na 1.ª página a montanha de cheques – 250 dos quais são do antigo Banco Totta & Açores e têm José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa como titular.

Esta descoberta surge pouco depois de o antigo ex-primeiro-ministro afirmar, numa entrevista, que apenas era titular, pelo menos nos últimos 25 anos, de uma conta na CGD.

A notícia do SOL cai como uma bomba na família de José Sócrates, que entra em pânico. Inicia-se então, entre Sócrates e os seus primos do lado paterno, António e José Paulo, uma série de telefonemas – que foram intercetados e serão depois juntos ao processo da Operação Marquês.
 
Alerta dado por um empregado da família

O alerta da publicação é dado por Aurélio Alves – funcionário de uma empresa do pai de José Paulo, a Coutada, na Baixa de Lisboa, que foi durante muito tempo o intermediário usado pela família para ir buscar dinheiro em numerário à loja de Francisco Canas, dono de uma estabelecimento de venda de medalhas na mesma zona e que era figura central no esquema de branqueamento de dinheiro da rede Monte Branco.

«Já viu o SOL? Estão lá a dizer que apareceram uns cheques numa quinta no Ribatejo, em nome de António Pinto de Sousa e outras pessoas. São não sei quantos mil cheques… Se puder, veja», diz Aurélio a José Paulo. Pouco depois, este atende um telefonema do irmão António: «Já viste? É uma coisa estranha…».

O outro ainda não lera o artigo – mas assim que mete os olhos no jornal percebe que o caso é grave. Adivinhando a fúria de Sócrates, com quem tem uma relação temperada de cumplicidade e temor, desabafa com o irmão: «Tive de ir a casa tomar um Xanax». O outro, que anda endividado e também vive sob a alçada financeira do primo, confessa: «Eu até perdi a fome!».

Os dois fazem então cálculos sobre o impacto da notícia. António segue a informação do dia através de um canal televisivo: «Na TV não passou nada», tranquiliza-se por momentos. Mas o irmão rebate: «Passou na TVI». Ao que o outro, conhecedor do temperamento do primo Sócrates, reage: «Estou com pena de ti!». Mas José Paulo, naquele momento, só pensa no ‘chefe’ (o código que usam quando se referem a Sócrates): «Coitado do gajo».
 
Sócrates fica furioso e ataca primos 

Passara muito tempo e a memória dos intervenientes enferrujara. Não percebem como tinham deixado o rasto dos cheques: José Paulo acha que haviam sido levados para Coruche para serem queimados, mas António acredita que foram lá parar durante uma mudança de escritórios. José Paulo deixa então cair uma informação reveladora de que José Sócrates sempre esteve por trás dos negócios dos Pinto de Sousa: «Deve ter sido da constituição da firma».

Embora nenhum deles se lembre de como os cheques foram parar a Coruche, não têm dúvidas de uma coisa: o primo deve estar «a ferver» com a notícia.

E, de facto, ainda não tinha passado uma hora quando Sócrates, a partir do escritório da Octafarma, para a qual já prestava serviços, liga a José Paulo. Irado, pede justificações: «Mas vocês esquecem-se dos cheques lá?». O primo gagueja: «Não sei explicar o que é aquilo…». O outro ataca, furioso: «Que cheques eram aqueles? Que conta era aquela que eu tinha no Totta & Açores?». José Paulo balbucia: «Não me lembro disso, ando às voltas disso, mas não me recordo… Deve ser do tempo da loja [referência a uma loja de desporto da família], quando se vendeu».

José Sócrates passa, então, a um tom inquisitorial: «Lembras-te daquele safado [Nuno Caçador]?». José Paulo lembra-se bem: «É um mentiroso. Diz que fui para lá chorar… É um aldrabão».
 
Proprietário da herdade conta a história

O SOL conversa com Nuno Caçador, o homem que vive na propriedade de Coruche – a qual fora emprestada aos Pinto de Sousa nos finais dos anos setenta, quando estes haviam regressado em situação difícil de Angola, onde tinham deixado os seus negócios após a independência do país.

Num armazém da quinta ainda existiam várias mobílias pertencentes àquela família – e, um dia, Nuno Caçador decide abrir uma escrivaninha velha que para ali estava havia anos sem ser reclamada pelos donos. Ora, qual não é o seu espanto quando, de uma das gavetas, caem 1.300 cheques do antigo Totta & Açores, em nome de José Sócrates e outros familiares. 250 têm Sócrates como titular.

«Qual é o banco que entrega tantos cheques de uma vez só a uma pessoa? Isto não é normal», questiona Nuno Caçador. 

O agricultor recorda ao SOL que, quando estava a pensar comprar o terreno – propriedade de uma amiga de família dos Pinto de Sousa –, José Paulo aparecera lá em Coruche acompanhado de Maria Adelaide, mãe de Sócrates, e pedira-lhe que não comprasse a quinta: «Começou a chorar, a dizer que tinha a vida desgraçada porque já tinha negócio feito com outra pessoa e tinha recebido dinheiro de sinal. ‘Então você não tem procuração da dona, não está mandatado para isso e vai receber sinal por uma coisa que não é sua?’, questionei. Até me ofereceu 50 mil euros para eu deixar aquilo, eu é que não fui na conversa».
 
Sócrates chama o primo de madrugada

A verdade é que a descoberta dos cheques deixara Sócrates mais nervoso do que aparentava naquele telefonema com o primo.

Já depois das três da manhã, liga a José Paulo e pede-lhe para passar por sua casa. Este já está a dormir, mas, sem colocar qualquer objeção, prontifica-se a arranjar-se e a sair ao encontro do primo.

Na manhã seguinte, António pergunta ao irmão se a conversa foi muito dura, mas o outro tranquiliza-o: «Aquilo [a notícia] morreu na praia. O gajo [Sócrates] já ligou para o Totta a pedir as datas dos cheques e eles dizem que não têm registos».
Mas Sócrates tinha razões para estar preocupado: a notícia podia dar origem a novas investigações relacionadas com negócios em que esteve envolvido, como por exemplo a Calçoeme, uma sociedade ligada à Mecaso, a holding da família Pinto de Sousa.

Ora, segundo o despacho de acusação do Ministério Público (MP) na Operação Marquês, a Calçoeme fez parte do primeiro plano de enriquecimento do ex-líder socialista. Através daquela sociedade, e sem recorrer a intermediários, Sócrates viu aí a oportunidade de se candidatar diretamente a obras públicas.

Juntamente com o seu amigo de infância Carlos Santos Silva, o ex-primeiro-ministro chegou a entrar nesta empresa, mas o plano acabou por sair furado quando José Guilherme, grande empreiteiro de Lisboa financiado pelo BES e acionista maioritário da Calçoéme, decidiu ‘roer a corda’ e desvincular-se do esquema montado. Mas a descoberta dos cheques em Coruche podia suscitar novas perguntas e desenterrar um passado até aí muito bem escondido. Daí que Sócrates ficasse até altas horas da noite a matutar numa forma de resolver aquele empecilho.
 
Primo queria pôr Felícia ‘na rua’

A família de Sócrates sentia-se perseguida pela imprensa e queria a todo o custo controlá-la. Defendia que tudo não passava de uma manobra para descredibilizar o antigo primeiro-ministro na opinião pública. O SOL era um dos jornais mais detestados pelos Pinto de Sousa, e a jornalista Felícia Cabrita foi mencionada diversas vezes nas escutas telefónicas recolhidas pelo MP.

Neste episódio dos cheques, em particular, o seu nome surge em várias conversas entre os familiares de Sócrates. Logo no dia da publicação da notícia, José Paulo Pinto de Sousa comenta com o irmão: «A gaja é uma perseguição».
No dia seguinte, numa outra conversa com o seu sócio Artur Areias, José Paulo mostra que continua apreensivo com o SOL: «Os c****** ficam com medo e começam a inventar notícias f*****. Foram encontrar para lá aquela m**** (…) Devem ter pago [a Nuno Caçador] para falar».

A conversa prossegue e os interlocutores começam a magicar uma forma de se livrarem de Felícia Cabrita – o que passa pelo envolvimento de Helder Bataglia e de Álvaro Sobrinho, então acionista do SOL e presidente do Banco Espírito Santo Angola (BESA). O sócio de José Paulo aconselha-o sobre a estratégia a seguir: «Devias falar com o ‘viajante’ [referência a Helder Bataglia]… Ele é que anda a patrocinar aquela m****». Mas o primo de Sócrates emenda-o: «Não é ele, são os amigos dele», diz, referindo-se a Álvaro Sobrinho.

A conversa passa então para outras notícias também publicadas pelo SOL, nomeadamente sobre a mãe de Sócrates, tia de José Paulo, e a compra de um imóvel em Cascais. É nessa altura que José Paulo volta a defender que a autora dos artigos deve ser corrida do jornal: «Essa vaca, essa p***… O c***** do viajante tem de a despedir, pô-la na rua, sem subsídio, sem nada (…)». E, inflamado de discurso patronal, não fica por aqui. Para os acionistas do Sol, prevê um mau fim: «O gajo [Sócrates] vai f***-los)».