Operação Fizz. Arguido aponta o dedo a Proença e Carlos Silva

A contestação de Paulo Blanco no processo Fizz – em que Manuel Vicente é acusado de ter corrompido o procurador Orlando Figueira – é explosiva. Pela revelação das redalções suspeitas entre personalidades de elites de Portugal e Angola na tentativa de influenciar a Justiça. Até Marcelo Rebelo de Sousa é chamado a testemunhar. 

Operação Fizz. Arguido aponta o dedo a Proença e Carlos Silva

O advogado do Estado angolano, Paulo Blanco, apresentou nos últimos dias a sua contestação no processo em que ele próprio e o vice-presidente de Angola, Manuel Vicente, são suspeitos de terem corrompido o procurador do português Orlando Figueira. No documento, a que o SOL teve acesso, conta uma versão dos factos verdadeiramente explosiva e comprometedora para figuras influentes dos dois países que não foram acusadas no processo Fizz: Carlos Silva, vice-presidente do BCP e presidente  do Banco Privado Atlântico, em Portugal e Angola, e Proença de Carvalho, advogado do primeiro. 

Na versão de Paulo Blanco, aquele banqueiro e o conhecido advogado são as principais figuras da alegada corrupção ao procurador Orlando Figueira. 

No documento são reveladas conversas com o procurador Rosário Teixeira, convites enviados a Pinto Monteiro, reuniões com Cândida Almeida, a intervenção do procurador-geral da República de Angola, contratos de trabalho e até amores e relações extraconjugais dos procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP).

O advogado que, além do Estado angolano, também representou Manuel Vicente noutros inquéritos pediu o levantamento do sigilo profissional para poder contar tudo o que se passou nos almoços e encontros em que ele próprio participou, deixa claro que o Ministério Público (MP) não terá entendido quem realmente lucrou com a intervenção de Orlando Figueira.

Blanco começa por rever os pontos da acusação – que defende que fora ele quem fez a ponte entre o magistrado português e a cúpula angolana com o objetivo de se alcançar um arquivamento de um processo envolvendo Manuel Vicente – para tentar mostrar como nunca fez qualquer intermediação ou tentou influenciar os magistrados do DCIAP. 

No documento entregue esta semana no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa é referido que os investigadores não quiseram chegar aos reais suspeitos: «O MP sabe – e tem elementos no processo que o demonstram – que não perseguiu quem ‘podia’ perseguir, infletindo no sentido de arquitetar uma versão dos factos que nada coincidiu com a realidade».

E essas personagens que foram esquecidas, segundo o advogado, são os «intermediários na execução do eixo central da factologia criminógenea» que a acusação diz ter existido.

No âmbito da Operação Fizz, Manuel Vicente foi acusado de um crime de corrupção ativa, um crime de branqueamento e um crime de falsificação de documento. Já o ex-procurador do DCIAP Orlando Figueira foi acusado por corrupção passiva, branqueamento, violação de segredo de justiça e falsificação de documento. Foram ainda acusados Paulo Blanco e Armindo Pires, da confiança de Manuel Vicente. O caso vai agora para julgamento e as contestações dos arguidos – além de Blanco, também os outros contestaram – aconteceram numa altura em que foi designada data para início do julgamento.

Blanco diz que não intermediou ‘relações perigosas’

Paulo Blanco defende que nunca intermediou qualquer encontro ou acordo de contrapartidas em troca de arquivamentos de processos, admitindo ter estado em alguns encontros e almoços onde muitos dos assuntos se falaram, inclusivamente a vontade expressa de Orlando Figueira deixar o DCIAP, num momento em que estava à frente de inquéritos que visavam cidadãos da elite  angolana, e de haver um alegado interesse de Carlos Silva em contratá-lo.

Quanto ao acordo, referido pela acusação, entre Manuel Vicente, Armindo Perpétuo Pires, o próprio Paulo Blanco e Orlando Figueira, o arguido diz que isso se tratou de uma forma genérica arranjada pelos investigadores para justificar tudo o que aconteceu. Porém, frisa Blanco na contestação, a investigação «sabe quem convidou o Dr. Figueira para abandonar o MP», até porque, diz, a «acusação contém elementos dessa ciência, e nomeia as pessoas que promoveram esse convite».

Sobre a amizade que mantém com procuradores, entre os quais Rosário Teixeira, lembra que o que antes era visto como «natural convívio informal», hoje são relações que «indiciam a prática de crimes».

A parte desta versão dos factos que é mais comprometedora começa quando o arguido decide contar o que presenciou nos bastidores dos inquéritos do DCIAP que visavam cidadãos angolanos. E começa por explicar que a sua relação com Orlando Figueira se iniciou quando defendia o Estado angolano visado numa investigação de 2008 que estava a cargo do ex-procurador. E foi aí também que diz ter conhecido Carlos Silva, testemunha nesse processo.

Foi ainda no âmbito do mesmo inquérito que se deu um dos encontros com altas figuras da Justiça portuguesa e angolana, isto porque a estratégia definida pela defesa do Estado angolano passou por requerer a inquirição de testemunhas para memória futura, «trazendo-as a Portugal e incorrendo nos custos das respetivas deslocações e estadias».

E isso acabou mesmo por acontecer: «Em reuniões realizadas no DCIAP, nas quais participou também, para além do arguido [Paulo Blanco] e do Dr. Orlando Figueira, S. Exa. o Procurador-Geral da República de Angola, Dr. João Maria de Sousa, a Dra. Cândida Almeida, então Diretora do DCIAP e a Dra. Carla Dias, Procuradora da República que com aquela trabalhava diretamente». E foi igualmente nesse momento que Orlando Figueira conheceu Carlos Silva.

Depois disso, Orlando Figueira, refere-se na mesma contestação, tomou uma decisão que deixou muitos estupefactos, que foi a de considerar suspeitas todas as testemunhas arroladas pelo Estado angolano, determinando inclusivamente a quebra do sigilo bancário – algo que Carlos Silva terá sabido com facilidade, dado ser o então presidente do Conselho de Administração e acionista maioritário do Banco Privado Atlântico Europa e do Banco Privado Atlântico, com participações pessoais superiores a 20%. 

Assim, Carlos Silva terá contactado de imediato o Estado angolano, bem como Daniel Proença de Carvalho – lembra que apesar de ser seu advogado, isso não ficou formalizado nos autos.

«O arguido [Paulo Blanco] percebeu então a existência de grande, aliás, enorme preocupação decorrente da quebra do sigilo bancário e às suas eventuais consequências, mas tomou também conhecimento que a mesma dizia respeito a negócios privados, ou seja, era uma questão absolutamente alheia aos interesses do Estado Angolano cuja defesa ali prosseguia», refere o documento a que o SOL teve ontem acesso.

No âmbito desse inquérito, as instituições de crédito enviaram toda a documentação pedida por Orlando Figueira e, segundo descrito por Paulo Blanco, «na sequência de diversas reuniões ocorridas no escritório do Dr. Daniel Proença de Carvalho […] o referido inquérito terminou por Acordo nos termos ali inscritos».

Uma outra versão da visita a Angola

Quanto à visita a Luanda, em abril de 2011, que juntou os procuradores Orlando Figueira e Vítor Magalhães a diversas individualidades angolanas, o antigo advogado de Manuel Vicente conta que, ao contrário do que refere a acusação, não foi ele a fazer o convite aos magistrados portugueses, mas sim o procurador-geral da República de Angola, João Maria de Sousa, via procurador-geral da República de Portugal, Pinto Monteiro. Ainda assim, o advogado admite ter acompanhado sempre os procuradores nas deslocações na capital angolana, dado que fora também convidado.

E é nesta visita que, segundo Paulo Blanco, a saída de Orlando Figueira do DCIAP se começa a desenhar. «O Dr. Orlando Figueira distribuía cartões de visita a toda a gente que se encontrava em tais eventos, como se fosse um profissional liberal por conta própria, cartões que tinha mandado fazer antes da viagem e, para tal, tinha naturalmente um propósito pessoal que não escondia a ninguém que era o de sair da magistratura do MP». Nesses encontros estava também Carlos Silva, que Figueira sabia ter muita influência e poder na banca.

Pedido de Orlando Figueira para chamar Carlos Silva a Lisboa

A viagem a Angola terminou a 2 de maio de 2011 e, segundo a versão do advogado, poucos dias depois Orlando Figueira terá entrado em contacto consigo para o informar que o procurador Rosário Teixeira tinha em mãos um inquérito no âmbito do qual pretendia chamar Carlos Silva, mas sem que este fosse notificado. Blanco conta que, antes de fazer a ‘ponte’, exigiu ser recebido por Rosário Teixeira, o que acabou por acontecer. Disse ainda que, quando chegou o dia da deslocação de Carlos Silva ao MP, o acompanhou não como advogado, até porque o advogado do angolano era Daniel Proença de Carvalho, mas porque Carlos Silva se sentia mais a vontade dada a relação que Blanco tinha com o procurador.

«Quer o Dr. Carlos Silva, quer o Dr. Daniel Proença de Carvalho, perceberam assim o nível de confiança de que o arguido gozava junto dos referidos Procuradores da República ao ponto de a ele recorrerem para o agendamento de uma inquirição no DCIAP nas circunstâncias descritas», refere.

Após essa sessão, o inquirido, o advogado e o procurador Orlando Figueira almoçaram no Ritz, em Lisboa, como bem referia a acusação. Porém, Blanco afirma que tudo aconteceu a convite de Carlos Silva e que Rosário Teixeira só não foi porque Orlando se antecipou quando o convite foi feito, «o que levou Rosário Teixeira a recusar».

O obrigado, a paixão por Angola e o novo trabalho 

Nesse almoço muita coisa aconteceu, nomeadamente o agradecimento de Carlos Silva por o DCIAP ter evitado notificá-lo formalmente e as manifestações de agrado do procurador com o que tinha visto em Angola. Segundo conta agora Paulo Blanco, o procurador terá de forma explícita manifestado vontade de ir para Angola trabalhar. Isto apesar de ter um problema que precisava de resolver antes. 

No documento entregue esta semana no tribunal é referido que Orlando estava a divorciar-se da mulher e contava ir com a namorada, a também procuradora do DCIAP Teresa Sanchez, para essa nova vida. Além disso, também a namorada era casada e precisava de divorciar-se antes de se mudar para o país africano.

O presidente do BPA correspondeu e disse que tinha um lugar para Orlando Figueira, referindo até que Paulo Marques, advogado e membro dos órgãos sociais daquele banco que trabalhava em Luanda, tinha interesse em regressar a Lisboa, devido a problemas que estava a atravessar com um familiar próximo: «O dr. Orlando Figueira tinha um lugar garantido no BPA em Angola quando quisesse ir».

A partir desse momento, os contactos entre ambos deixaram de precisar de intermediação, conta Paulo Blanco. Nessa altura, maio de 2011, o advogado conta que a sua sociedade só tinha trabalhava um inquérito do DCIAP em que era assistente o Estado angolano e que as suas deslocações ao edifício eram sempre de âmbito profissional. Admite, porém, que chegou a ser procurado para que ajudasse na elaboração dos requerimentos necessários ao início do divórcio por mútuo acordo.

A reunião com Cândida Almeida 

«Em Setembro de 2011 o arguido foi procurado por S. Exa. o Sr. Procurador-Geral da República de Angola que lhe relatou, nas circunstâncias já descritas pelo arguido nos autos, ter conhecimento da necessidade do Eng. Manuel Vicente justificar a aquisição de um apartamento que adquirira no edifício Estoril Sol e a preocupação política, do Estado Angolano, decorrente da eventual exposição pública dos rendimentos e salários do mesmo e ao uso desta informação na disputa política angolana atenta a proximidade das primeiras Eleições Gerais no âmbito da nova ordem constitucional angolana», refere o documento.

Nesse sentido, e conhecendo a relação de confiança que Blanco tinha com a então diretora do DCIAP, Cândida Almeida, o PGR de Angola pediu-lhe que «procurasse saber qual era a prática processual no referido Departamento relativamente aos comprovativos de rendimentos dos investigados». O pedido, adianta, deu lugar a uma reunião com Cândida Almeida e Orlando Figueira em outubro, em que os dois magistrados terão deixado claro ter o entendimento de que «a documentação relativa a salários e rendimentos pessoais faz parte da reserva da vida privada» e que «não ficaria acessível a terceiros, nomeadamente à imprensa».

Foram inclusivamente dadas indicações de como fazer o requerimento, sem que fossem referidos os valores no mesmo, mas sempre fazendo referência aos documentos, algo que Blanco viria a explicar ao PGR de Angola.

Nessa altura, conta, ainda estava longe de saber que iria ser chamado para defender Manuel Vicente e lembra que o arquivamento que aconteceu depois neste inquérito era o caminho que qualquer procurador tomaria. «Posteriormente, o arguido [Paulo Blanco] foi mandatário dos cidadãos Leopoldino Fragoso Nascimento e mulher, e de Luísa Giovetti, e os respetivos processos foram arquivados pelo Procurador da República, Dr. Ricardo de Matos, com os mesmos argumentos e fundamentos, sendo que os valores em causa provinham das mesmas empresas, ou seja, eram e são exatamente as mesmas transferências que simultaneamente visavam pagar sinais e reforços de sinais de frações diferentes. Sendo até caricato, senão mesmo hilariante, não fosse a gravidade da situação, que no mesmo Departamento, no DCIAP, se considere, relativamente às mesmas quantias, provenientes das 32 mesmas empresas, que um magistrado, o Dr. Ricardo Matos, agiu dentro dos limites da sua autonomia técnica e não é perseguido, nem disciplinarmente sequer, e outro, o Dr. Orlando Figueira, é perseguido criminalmente por não ter investigado a proveniência exatamente das mesmas quantias, oriundas das mesmas empresas», conclui a defesa de Paulo Blanco.

O segundo almoço e o ‘fecho do acordo’

Em dezembro, volta a haver um novo almoço no Hotel Ritz, onde Orlando Figueira confessa que a namorada tinha decidido não se divorciar, uma vez que isso acarretaria o risco de o marido não saldar uma dívida de 500 mil euros que tinha para com o pai desta e que, por isso, tinha decidido que partiria sozinho para Angola.

Nessa altura, Blanco chegou mesmo a rever uma minuta de trabalho, sendo que Carlos Silva ainda não tinha decidido se seria para o BPA Europa ou para o angolano, sendo que mais tarde referiu ter entregue a minuta do contrato no BPA Europa (ou seja,  português).

Mas, no mês seguinte, declarações do ativista angolano Rafael Marques num inquérito em curso implicaram não só a entidade bancária como Carlos Silva, o que levou este último a decidir que a entidade patronal de Orlando Figueira tinha de ser a Primagest, «que é como é bom de ver um mero veículo do Banco Privado Atlântico, SA, de direito angolano». A partir daí, vários foram os motivos que levaram Blanco a cortar relações tanto com Orlando Figueira como com Carlos Silva.

O papel central de Proença de Carvalho

Ainda assim, em fevereiro de 2012, Blanco diz ter sido de novo chamado ao BPA por Carlos Silva e pelo advogado André Navarro, para lhe solicitarem os seus serviços para a empresa Edimo, no âmbito de um inquérito em que Rosário Teixeira era o procurador titular. Esta empresa estaria a responsabilizar o banco pela sua situação atual.

«O que fizeram, sublinharam, com a prévia anuência do Dr. Daniel Proença de Carvalho, Coordenador dos Serviços Jurídicos do Banco que, atenta a confiança que o arguido tinha com o Dr. Rosário Teixeira, como resultara da inquirição do Dr. Carlos Silva, concordava que o patrocínio em questão lhe fosse entregue caso os clientes do Banco não se opusessem», revela.

Tal acabou por acontecer, e a sociedade de Paulo Blanco assumiu a defesa da Edimo em fevereiro. Pouco depois, Orlando Figueira terá contactado o advogado dizendo que estava a colaborar com Proença de Carvalho e propondo um esquema em que tanto Orlando Figueira como Blanco poderiam ganhar. A recusa deste último, refere-se, terá feito que com fosse chamado mais tarde ao banco e lhe fosse comunicado que por decisão do ‘Coordenador’ (ver caixa) o caso seria confiado ao Dr. Cortes Martins, «que tinha sido colega de curso do Dr. Rosário Teixeira».

Segundo Blanco, o desfecho prova que aquilo que ele não aceitou fazer acabou por acontecer depois do seu afastamento. E adianta que as ligações perigosas não se ficaram por aí: « O Dr. Orlando Figueira continuou a colaborar com o Dr. Daniel Proença de Carvalho, tendo sido ele quem combinou com o Procurador da República, Paulo Gonçalves, a inquirição do Dr. Carlos Silva no âmbito do referido inquérito nº 208/13.9 TELSB que, por via do instituto da separação de processos, veio a dar origem ao processo n.º 356/14.8TELSB».

Sobre este inquérito que visava Carlos Silva, o advogado afirma que o arquivamento para o qual terá sido essencial a intervenção de Orlando Figueira acabou por ter um resultado de enorme importância, «por razões que o MP nunca percebeu como resulta da acusação».

O juiz Carlos Alexandre, do Tribunal Central de Instrução Criminal, já tinha falado nas ligações a Proença de Carvalho quando foi chamado a depor enquanto testemunha da acusação. Numa das duas vezes em que foi chamado, o juiz do TCIC disse que Orlando Figueira, de quem é amigo, lhe tinha dito que tinha sido Proença de Carvalho a resolver a sua situação, em 2015, altura em que precisava de romper o contrato com a sociedade Primagest.

Testemunhas de peso

O advogado que representou o Estado angolano em diversos processos também surpreende no rol de testemunhas que apresentou. Pede para arrolar o Presidente da República, vários magistrados, dos quais se destacam Rosário Teixeira e Cândida Almeida, Daniel Proença de Carvalho, os juízes do Tribunal Central de Instrução Criminal Carlos Alexandre e Ivo Rosa e ainda João Soares e Fernando Seara.

Os rois de testemunhas do processo Fizz, indicados pela acusação e pelas defesas dos vários arguidos incluem ainda muitas outras personalidades das elites de Portugal e Angola.