E isto ainda antes das autárquicas de 2013.
Qual seria a ideia de Sócrates? Recorde-se que Seguro tinha separado as águas no PS, criando um ‘cordão sanitário’ à volta dos socráticos. Os homens de Sócrates eram marginalizados. Ao colocar Costa na liderança, José Sócrates queria ‘repor a normalidade’, promovendo o regresso dos seus fiéis à primeira linha do partido.
Esta estratégia falhou antes das eleições (levando Sócrates a dizer que Costa não tinha «tomates») mas resultou logo a seguir.
No rescaldo das autárquicas, considerando que o PS ganhara por «poucochinho», António Costa saltou para o ringue, desafiou Seguro e ganhou o combate. E, de facto, os socráticos regressaram todos ao palco. E aí estão hoje a dar cartas.
Pedro Silva Pereira, que era o braço-direito de Sócrates, seu ministro da Presidência, é deputado europeu e representa o PS em programas televisivos.
Vieira da Silva, que era um dos comensais dos jantares promovidos por Sócrates na Tertúlia do Paço, no Lumiar, fazendo parte do seu inner circle, é hoje ministro da Segurança Social.
Augusto Santos Silva, considerado um dos elementos intelectualmente mais capazes da equipa de Sócrates, é hoje ministro dos Negócios Estrangeiros.
João Galamba, um ‘espião’ de Sócrates, que contava a este o que se passava nas fileiras de Costa, também comensal dos jantares da Tertúlia, é hoje porta-voz do grupo parlamentar e fala (melhor, vocifera) com frequência em nome do partido.
Marcos Perestrello (de seu nome completo Marcos da Cunha e Lorena Perestrello de Vasconcelos, sobrinho-trineto do 1.º visconde dos Olivais), outro elemento a que Sócrates recorria com regularidade para certas tarefas, é secretário de Estado da Defesa.
Pedro Marques, um dos socialistas que no passado apareciam com mais frequência ao lado de Sócrates, é ministro do Planeamento e Infraestruturas.
Azeredo Lopes, que na liderança da ERC tantas vezes protegeu Sócrates, é hoje ministro da Defesa.
Luís Patrão, chefe de gabinete e secretário de Estado da Administração Interna de Sócrates, foi nomeado responsável pelas finanças do PS.
Maria Manuel Leitão Marques, autora do Simplex, um dos ex-libris dos governos de Sócrates, é hoje ministra da Modernização Administrativa.
Mesmo Ferro Rodrigues, que estranhamente se tornou um acérrimo defensor de Sócrates – embora este nunca o tenha apoiado quando ele estava à frente do Partido Socialista –, é hoje presidente da Assembleia da República.
Serão precisos mais exemplos?
A ‘tralha socrática’ está hoje toda no poder.
O objetivo de Sócrates foi, portanto, cumprido.
Só sobra uma pequena questão: para que quereria José Sócrates o regresso ao poder dos seus fiéis?
Por solidariedade?
Por generosidade?
Para pagar os serviços prestados?
Sócrates não é assim tão generoso.
Ele queria meter um grupo dos seus peões em lugares-chave do PS para funcionar como Cavalo de Tróia.
No momento próprio, eles fariam um golpe de Estado que destronaria António Costa e promoveria o regresso de José Sócrates à liderança.
Hoje Sócrates diz que o seu objetivo era ser Presidente da República e que o processo judicial que lhe moveram teve por objetivo afastá-lo dessa corrida.
Mas as escutas desmentem-no.
Ele queria mesmo voltar à liderança do PS e à chefia do Governo.
António Costa era um mero peão que ele usava para fazer regressar a ‘tralha socrática’ – e que, uma vez feito esse trabalho, seria deposto.
Mas António Costa foi mais esperto.
Quando as coisas na Justiça se complicaram e Sócrates foi preso, voltou-lhe as costas e abandonou-o à sua sorte.
E hoje não se sabe se a ‘tralha socrática’ é mais ‘socrática’ ou mais ‘costista’.
Arrisco-me mesmo a dizer que a maioria já abandonou Sócrates e é mais fiel a Costa – pois é este quem hoje manda.
A política é assim.
Ninguém pode contar com fidelidades para a vida.
Nem Sócrates.
Um tiro pela culatra
António Costa considerou «indigno» o jantar da Web Summit no Panteão Nacional, atirou as culpas para o Governo anterior por produzir o despacho que permitiu tal abuso, e afirmou que iria mudar a legislação. Esta tomada de posição foi geralmente bem recebida.
Veio a apurar-se, porém, que:
1. O referido despacho do Governo de Passos Coelho determinava a aprovação dos eventos caso a caso;
2. Assim, teve de ser este Governo, através da D.G. do Património, a aprovar o jantar;
3. E não havia qualquer razão para o proibir, pois já lá se haviam realizado vários eventos semelhantes, desde o jantar de uma empresa pública (a NAV), a 19 de outubro (também com 200 pessoas), a um jantar da Associação do Turismo de Lisboa, que era tutelada por António Costa, a 11 de setembro de 2013 (para promover o fado).
Confrontado com estes factos, que foram públicos, António Costa disse desconhecê-los.
É óbvio que sim. Caso contrário não faria as afirmações que fez. Mas como se entende que um primeiro-ministro possa tomar uma posição pública tão categórica sem conhecer o assunto de que fala?
Só há uma forma de o entender, e ela é muito reveladora do modo como este Governo faz política.
António Costa pretendeu:
1. Sacudir a água do capote, demarcando-se à pressa de um caso incómodo;
2. Agradar ao povo, associando-se à sua ‘indignação’ com um ato ‘desrespeitoso’ para com os heróis da Pátria;
3. Culpar o Governo de Passos Coelho por tamanha indignidade.
Sucede que, com a urgência de atuar, o tiro que António Costa quis dar saiu-lhe pela culatra.
E, para a sua imagem, foi um episódio muito pouco dignificante.