Jorge Silva. “Há sítios no país onde não há nada, já nem há correios, mas há um notário”

Notários elegem no próximo sábado um novo bastonário. Jorge Silva, 40 anos, notário na Maia,  encabeça a lista A na corrida à direção da Ordem

Jorge Silva, notário na Maia e especialista em Direito e Informática, acredita que os notários podem ser parceiros do Estado numa rede que não abandone o interior do país, tirando partido da tecnologia. Mas é essencial que setor público e privado tenham acesso a ferramentas iguais, o que hoje não acontece, defende o candidato a bastonário, que denuncia a “concorrência desleal” dos balcões públicos.

O mote da sua candidatura é “notários com futuro”. Quais são as grandes preocupações?

Neste momento os notários sofrem bastante com a concorrência de uma série de balcões do Estado, que começaram a praticar atos iguais aos nossos. É uma concorrência desleal na medida em os balcões do Estado não cobram IVA.

Em que serviços?

Por exemplo num contrato de compra e venda de uma casa. A escritura era feita no notário e já há uns anos que pode ser feita no serviço Casa Pronta. Os notários não têm nada contra a simplificação do processo, agora quando o Estado está em concorrência com os privados, deve seguir as mesmas regras, o que não tem acontecido.

Mas não é o Estado que regula a atividade dos notários?

Pois, ainda é mais esquisito. Até a restauração tem um IVA mais baixo do que aquele que o Estado nos obriga a cobrar aos cidadãos. E é por isso que esta é uma das nossas reivindicações.

Como se chega a esse ponto quando ainda há bem pouco tempo, no início deste século, eram funcionários públicos?  

Acho que houve uma confusão entre o que é oferecer novos serviços aos cidadãos, e o Estado é livre de o fazer, com a necessidade de compatibilizar os serviços existentes. O Estado, para proteger e promover os seus próprios balcões, cria condições desfavoráveis para o resto do setor.

E à frente desses balcões estão que profissionais?

Conservadores, mas foram criados quadros legais em que os conservadores podem delegar poderes em funcionários até para responder ao volume de pedidos. A grande maioria destes funcionários não é licenciada em Direito e muitos nem têm formação superior. O que resulta numa situação estranha: temos funcionários sem formação jurídica a praticar atos que deviam ser praticados apenas por juristas.

Recebem processos nos cartórios que indiciam isso?

Erros podem ser cometidos por todos, mas é mais normal que surjam por parte de quem não tem formação. Esses erros cabe ao Estado assumir. Nós respondemos pelo nosso trabalho e o que sentimos aqui é estranheza por, em Portugal, até existir uma lei relativa à procuradoria ilícita e leis que determinam os atos que devem ser praticados por juristas e depois temos o próprio Estado a promover a prática de atos de natureza jurídica por não juristas.

Caso seja eleito, o que tenciona fazer para alterar a situação?

A nossa vontade é conversar com o governo no sentido de melhorar o sistema de justiça português. Falar também com a Ordem dos Advogados, com os solicitadores, com os conservadores. Um dos grandes problemas da justiça portuguesa é serem tomadas decisões num quadro corporativista e o que queremos perceber é como harmonizar o sistema. Não adianta discutirmos quem é melhor mas encontrar uma solução em que o serviço prestado seja o melhor possível e o cidadão, em função disso, escolhe onde quer ir. 

Mas então a sua ideia é que ambas as ofertas podem existir.

Sim, com armas iguais. Outra coisa que reclamamos é o acesso às bases de dados do registo predial, do registo comercial e do registo civil. Neste momento o Estado obriga-nos a consultar estas bases como se fôssemos um qualquer cidadão. 

Têm de ir ao Instituto dos Registos e do Notariado? 

Podemos fazê-lo online mas temos de pagar taxas. Por exemplo se precisamos de consultar um registo de um prédio numa fase instrutória de um processo somos logo obrigados a pagar o acesso à base de dados que custa 15 euros. Os balcões do Estado acedem tudo sem pagar, o que agrava a concorrência desleal. O que defendemos não é um regime especialíssimo para os notários, mas darem-nos condições de trabalho. Em alguns casos também pode ser necessário o acesso a dados bancários a pedido dos cidadãos e queremos discutir estas questões.

Os notários passaram a ser profissionais liberais há apenas 12 anos. Com essa concorrência por parte do Estado, sentem que houve um desvirtuar dessa reforma?

É algo que tem acontecido ao longo dos anos. Na altura a reforma foi feita por um governo PSD e seguiram-se governos socialistas com visões distintas que caminharam neste sentido. É legítimo que os partidos tenham visões distintas, importa é que as decisões sejam harmonizadas. O programa que a minha lista apresenta promove aspetos que podem contribuir para essa harmonização, por exemplo a desmaterialização de alguns processos, para permitir ao país ter uma rede de prestadores destes serviços a nível nacional, nomeadamente no interior. É preciso perceber isto: muitas vezes quando o Estado fecha serviços no interior do país, os notários continuam.

Está a dizer que mesmo que os balcões públicos funcionem nas cidades maiores, no interior são indispensáveis?

Isso constata-se facilmente. Há sítios onde não há nada, já nem há correios, e ainda há um notário. O que pretendemos é integrar os notários em rede e criar novos serviços.

Por exemplo?

Uma das propostas é a criação da escritura eletrónica, que permita a uma pessoa que esteja em Freixo de Espada à Cinta realizar um contrato com outra que esteja em Lisboa, com a segurança que o notário lhe dá.

E como resolvem a questão da assinatura perante o notário?

É feita perante um notário em Lisboa e perante um notário em Freixo de Espada à Cinta, com assinatura digital e a segurança jurídica de que foram mesmo as pessoas que assinaram. Com isto vamos permitir mais negócios. Queremos também desmaterializar o processo para que não seja preciso alguém nas ilhas esperar por um papel do Algarve e as comunicações com o Ministério Público e a Autoridade Tributária. Mesmo para as pessoas que não dominam as novas tecnologias, nós continuaremos ao balcão a fazer a ponte e a introduzi-las nesse mundo. Porque repare: por vezes o Estado oferece a possibilidade às pessoas  de usarem o digital mas muitos se não tiverem um balcão que os oriente não vão conseguir usufruir dessas ferramentas. E o notário é o agente que ajuda a pessoa a perceber se quer mesmo assinar aquele documento.

E essas plataformas seriam uma iniciativa particular?

Sim. A única coisa que pedimos pontualmente ao governo é que ajude a regulamentar algumas matérias, nomeadamente com a proteção de dados, e que ajude a integrar tudo. O Estado precisa de parceiros. Tem tentado centralizar serviços para poupar recursos e a austeridade financeira assim o obrigou. Achamos que somos uma alternativa ideal para que deposite em nós esse papel, aproveitando esta rede dinâmica de cartórios. Nestes últimos tempos temos sido bastante ativos por exemplo na aquisição de imóveis por estrangeiros e tentamos acompanhar estes novos movimentos.

O que tem em mente?

Uma das nossas ideias é disponibilizar online uma lista de todos os notários que dominam determinadas línguas para os estrangeiros poderem escolher um cartório onde tenham maior facilidade de entendimento. 

Defende também um concurso anual para atribuição de licenças dos cartórios.

Temos cerca de 50 notários à espera de tomar posse. O último concurso foi há cerca de dois anos e ainda não terminou.

E os cartórios estão fechados? 

Em algumas terras estão e noutras são assegurados pelo notário do concelho vizinho. Queremos que passe a haver um concurso anual em que todos os notários possam concorrer às licenças livres. Outro problema que identificámos e que tem sido marcante nestas eleições é tornar mais ágil a nova competência que nos foi atribuída há cerca de três anos que é a tramitação de inventários, ou seja a intervenção nas partilhas por divórcio ou falecimento. Até aqui, quando as pessoas não se entendiam, esses processos eram tramitados nos tribunais e o legislador, ainda no tempo da ministra Paula Teixeira da Cruz, entendeu que o processo passaria para os notários. A transição foi feita com regras deficitárias.

Ouvimos falar de atrasos.

O grande problema é que o Estado atribuiu-nos esta competência mas demitiu-se da criação de condições para o seu exercício. Não há um número máximo de processos por notário, portanto se em Lisboa toda a gente escolher o mesmo notário para colocar o processo, é natural que haja atrasos. É algo que tem de ser corrigido de imediato.

O notário não pode recusar?

Não… A pessoa vai ao site inventarios.pt, existem algumas regras relacionadas com a residência, mas se a última morada do casal for Lisboa e houver um notário no topo da lista chamado António e toda a gente o escolher, este notário vai ficar com centenas de processos e não consegue tramitar nada. Mas há mais problemas: nestes casos o Estado também ainda não nos deu acesso às bases de dados, portanto temos de pagar e o processo é muito moroso. O Estado, nos termos da lei, também estava obrigado a fazer um protocolo com os CTT para o envio das notificações e nunca fez, portanto são os notários que adiantam o dinheiro.

Não se ouve muito falar destas dificuldades. É por serem uma profissão discreta?

Apagou-se bastante e tem estado um pouco anónima, foi uma das razões para me candidatar. Esta lista assume claramente que quer fazer uma rutura com a anterior direção e que passa por tentarmos, enquanto Ordem, ajudar os notários a encontrar uma estratégia que permita dinamizar a profissão. Queremos ser disruptivos, até introduzindo o voto eletrónico para auscultar os associados. 

A profissão apagou-se porquê?

O tipo de atividade que exercemos é por natureza discreto. As pessoas gostam da confidencialidade do notário, ao contrário dos advogados que utilizam a sua reputação para angariar clientela. A questão é se estamos a levar isto demasiado à risca e perdemos a capacidade de reivindicar. Mas queremos também estar mais presentes na sociedade. Uma das medidas no programa é a renovação das plataformas de comunicação da Ordem e acho que teria sido fundamental termos estado num evento como a Web Summit, ajudamos muitas start ups a nascer.     

Conseguem ser de certa forma um barómetro da sociedade. 

Sem dúvida. Quando começou a crise estivemos ao lado das pessoas, vimos empresas desesperadas. Houve notários que abdicaram dos seus honorários, viram clientes seus de anos perder tudo. Ajudaram as pessoas a emigrar, a preencher documentos. O que sentimos hoje é que as pessoas que decidiram ficar estão a ter algumas oportunidades. Sou notário na Maia e muitas pessoas que perderam os seus empregos tentaram dar a volta por cima, criaram novas empresas. O Porto está pujante. E notamos que as pessoas voltaram a comprar casa.

São decisões mais cautelosas do que no passado?

Há mais cautela dos dois lados. Por um lado, de quem concede crédito: pedem-se muito mais garantias, a avaliação dos imóveis é mais rigorosa. Antigamente era por diversas vezes sobrevalorizada face ao valor real. E depois do lado de quem compra, muitas pessoas que passaram por dificuldades perceberam que é necessário ter alguma poupança e que as responsabilidades que assumem têm de ser de alguma maneira comportáveis.