Lajes. ‘O povo está a pagar com a vida’

‘14 dos 34 locais suspeitos são considerados muito provavelmente contaminados e/ou representam uma ameaça relativamente alta para o ambiente ou para a saúde pública’, diz o relatório que o Governo escondeu.

A contaminação de solos e aquíferos na Ilha Terceira em consequência das décadas de cedência da base das Lajes aos Estados Unidos da América, noticiada pelo jornal i esta semana, constitui um perigo para a saúde pública. Um ex-funcionário português da base defende-o e um professor da Universidade dos Açores explica-o. O SOL revela também o relatório pedido pelas autoridades norte-americanas – que o Governo rejeitou partilhar com o Parlamento, alegando secretismo diplomático, – que também expõe vários casos de território intoxicado por hidrocarbonetos e metais pesados derivados de atividade militar americana.

Félix Rodrigues, professor da Universidade dos Açores, aponta ao SOL a considerável diferença entre os casos de cancro no concelho da Praia da Vitória – em redor da área visada – e o número de doentes oncológicos no restante arquipélago. «Falta uma ligação inequívoca entre as taxas de cancro e as zonas poluídas, a nível de aquíferos e solos», adverte. «Mas o que é certo é que as diferenças são significativas entre a média de casos [oncológicos] nos Açores e a média de casos no concelho da Praia da Vitória», retoma depois. «Veja bem: o concelho tem 8,5% da população do arquipélago, mas 20% de todos os casos de cancro do arquipélago inteiro estão no concelho da Praia da Vitória. Eu não tenho uma relação causa/efeito investigada porque cancro é uma doença multifactual, o que torna difícil estabelecer essa relação, mas que os números estão lá, estão, e não têm uma relação homogénea [entre a população geral e os casos de doença oncológica».

O académico refere ainda o derrame de combustíveis (também mencionado no relatório) e o enterro de tanques como causas para a poluição. «Tanto o Laboratório Nacional de Engenharia Civil (como o relatório norte-americano) confirmam que há, de facto, uma contaminação». Para, Félix Rodrigues «há uma razão de preocupação porque há problemas de saúde preocupantes». «Não tenho visto os americanos negarem nada. Tenho-os visto não dizer nada depois de os portugueses não dizerem nada», ironiza, considerando que «aquilo que se passa só tem duas justificações: interesse político ou iliteracia científica». «A resolução será sempre tecnologicamente difícil, ou seja, financeiramente dispendiosa», termina.

Ao Diário Insular – um jornal local publicado em Angra do Heroísmo – Orlando Lima, um ex-técnico de ambiente da base das Lajes, acrescenta críticas. «Para as situações domésticas, os norte-americanos reagem prontamente e estabeleceram mecanismos como os super fundsites para o efeito. Fora de portas, empurram com a barriga, sabendo que o que a vista não vê o coração não sente. Efetuam umas manobras de charme, com a tutela da nação, que normalmente compactua com o infrator e entretanto o povo com a própria vida paga a fatura», disse, este verão, sugerindo a instalação de um centro de tratamento específico como solução para a área.

No documento das autoridades norte-americanas é relatado o «odor e sabor» da água local, que terá gerado «queixas» e nas conclusões pode ler-se que dos 38 locais examinados na Terceira, quatro estão contaminados e os restantes 34 estão suspeitos. «Estes locais suspeitos requerem uma investigação para concluir se são ou não um risco para o ambiente, para a saúde pública ou para a missão (isto é, para a própria base)». Ainda nas conclusões, lê-se «a opinião técnica que 14 dos 34 locais suspeitos são considerados muito provavelmente contaminados e/ou representam uma ameaça relativamente alta para o ambiente ou para a saúde pública, comparativamente aos restantes», sendo que, avisa o documento, a lista não implica que os restantes vinte locais estejam «avaliados como livres de contaminação» e «possivelmente também impactando os solos e aquíferos nas suas redondezas».

São 8 mil quilómetros que separam Lisboa de Washington D.C. e foram duas alterações orçamentais em cada parte que causaram tumulto no que está entre elas: o arquipélago dos Açores – mais concretamente, a Ilha Terceira.

No Orçamento do Estado português para 2018, contrariamente ao do ano corrente, não está referido o Plano de Revitalização Económica da ilha Terceira (PREIT). No Orçamento da Defesa norte-americana para o mesmo ano, também contrariamente ao anterior, a referência na lei à base das Lajes teve igual desaparecimento. As duas mudanças orçamentais – ou conversões a omissão – suscitaram um terramoto político que colocou um ministro socialista a ser desmentido por um presidente regional socialista (ver caixa) e um ministro das Finanças a não saber o que responder num debate sobre o seu próprio Orçamento (Centeno disse: «Vou tentar saber o que se passou»). O SOL procurou o porquê do tumulto. Marcelo Rebelo de Sousa, em visita à Terceira há menos de um mês, deixou pistas: «As autoridades, quer na república, quer a nível regional, consideram essa matéria muito importante e não a tem deixado de tratar em conformidade». Falava-se da descontaminação da ilha em consequência do poluído pela utilização norte-americana da base das Lajes.

A semana passada, no Parlamento, o BE criticou o Governo por não ter «qualquer plano de descontaminação», tendo sido uma proposta dos bloquistas açorianos que garantiu ao LNEC a possibilidade de acompanhar eventuais trabalhos relacionados com esse processo. Para o PSD, não é pela obrigação americana de pagar essa descontaminação que o Orçamento deve estar desprovido de uma referência a algo que a previna. É nesse sentido, sabe o SOL, que os sociais-democrata apresentarão uma proposta de alteração ao OE que faça o referido plano de revitalização regressar ao Orçamento. O PS, por sua vez, prefere aguardar pelos resultados da reunião bilateral com os EUA para garantir que quem poluiu pagará. «Perguntar onde páram os 100 milhões de euros no Orçamento de Estado significa pura e simplesmente» desistir «de exigir aos EUA a obrigação que eles têm de descontaminar o que contaminaram», disse Lara Martinho, socialista, na Assembleia, também esta semana. A próxima reunião bilateral é em dezembro e guarda a má memória da última, que não confirmou quaisquer progressos. «O Governo da República, recordo, é que tem a responsabilidade para, face ao Governo dos Estados Unidos, transmitir que a forma como está a ser abordado este assunto não nos satisfaz. É preciso um procedimento mais rápido e com mais medidas», disse Vasco Cordeiro, em maio. Se, por um lado, a administração norte-americana ainda se encontrava em período de transição nessa altura, – com o embaixador de saída –, a verdade é que a doutrina da presidência de Donald Trump no que diz respeito à política externa não é exatamente apologista de despesas – nem de grandes amizades.

É inequívoco que todos os partidos políticos encaram a descontaminação da ilha Terceira como prioridade. Não é unânime o modo como os Açores vão consegui-lo.