Sócrates. De “animal feroz” a animal acossado

A 21 de novembro de 2014, quando se sentou no lugar 23C do Airbus da Air France com destino a Lisboa, há muito que José Sócrates não sabia o que era viajar em classe turística. E tinha todos os motivos para estar apreensivo. Excerto do primeiro capítulo de “Caso Sócrates – O Julgamento do Regime”,…

Desde o caso Freeport, denunciado em 2009, a jornalista do semanário “Sol” e do “i” Felícia Cabrita tem acompanhado à lupa todas as investigações que envolvem o antigo-primeiro ministro e que culminaram na sua detenção a 21 de novembro de 2014, quando regressava de Paris. Agora, Felícia e o também jornalista de investigação e biógrafo Joaquim Vieira reconstituem a Operação Marquês com base num conhecimento profundo do processo e revelando escutas comprometedoras. O livro estará nas livrarias a partir de dia 7 e será apresentado dia 11, na Fnac Colombo, por Henrique Neto e Mário Crespo.

“Mesmo trajando informalmente, a sua elegante silhueta não passa despercebida no aeroporto parisiense Charles de Gaulle. Em novembro, o tempo começara a ficar severo. Com o seu velho dólmen azul-escuro, calças desportivas e um único saco de mão como bagagem, percorre uma das alas do Airbus A319 da Air France até chegar à antepenúltima fila. Senta-se no lugar 23C, na coxia do lado esquerdo. Aconchega-se, claramente incomodado com o exíguo espaço que não lhe permite esticar as pernas. Habituado a viajar em classe executiva, o assento em turística apenas lhe promete duas horas de desconforto. E ele precisa de descansar, de refletir, para se preparar para o embate. Desenhará mentalmente os muitos cenários que estarão a aguardá-lo ao desembarcar em Lisboa – destino daquele voo com o código AF1124 –, e nenhum deles lhe parece promissor.

Bem remunerado, a trabalhar desde há quase dois anos para a multinacional Farmacêutica Octapharma, levando aos 57 anos, uma vida de jet set, José Sócrates talvez já nem se lembre da última vez que viajara em turística. E não fora há muito tempo que, em conversa com António Guterres, seu compagnon de route político e seu antecessor na liderança do Partido Socialista e do governo, resumira a escassos tópicos a lista de prioridades pessoais naquele momento da sua existência: «Agora trabalho para a Octapharma, tenho um emprego porreiro, os gajos tratam-me como a um ex-primeiro ministro, o que já não é habitual neste país. Faço com eles umas viagens a São Paulo [Brasil] e à Colômbia, falo com uns políticos de lá…» O interlocutor interrompera-o a rir-se: «Arranjaste um tacho.» Instalado o bom humor, ele prosseguira: «Só me pagam as viagens em primeira classe, exigem que fique em bons hotéis e preocupam-se com os restaurantes onde vou!» E concluiu: «Têm sido uns queridos, umas pessoas encantadoras. Tenho sido muito feliz.»

Mas não era o caso neste retorno a Portugal, decisão que, naquele estranho outono de 2014, não fora fácil de tomar. Sócrates deixara o país dois dias antes, a 19 desse novembro, uma quarta-feira, com a intenção de ficar por Paris apenas uma noite. Mas na quinta-feira protelou a partida por mais 24 horas, no meio de acontecimentos que nesse dia o deixariam tremendamente apreensivo.

Há menos de uma legislatura ainda chefiava o governo, lugar que conquistara uma década antes, por mérito próprio, com uma retumbante vitória por maioria absoluta – a primeira obtida pelo PS. É verdade que os seus dois mandatos consecutivos de primeiro-ministro não tinham culminado da melhor maneira, forçado que foi, contra vontade, a pedir o resgate financeiro do país a uma troika internacional de credores, motivo da sua demissão e da sua derrota eleitoral em 2011. Mas eram águas passadas.

Agora, aquele que antes se retratara como um «animal feroz» sente-se apenas como um animal acossado – e pouco mais do que isso.

É que – não duvida – está metido em apuros. Sabe que amigos seus, com os quais possui relações económicas, foram detidos na véspera em Lisboa e os apartamentos do filho mais velho, José Miguel, e da ex-mulher, Sofia Fava, licenciada em Arquitetura, passados a pente fino pelas autoridades judiciais. Por isso já intui que, aconteça o que acontecer, não ficará incólume.

[…]

Almoçava no mítico Les Deux Magots, antigo poiso dos existencialistas Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir ou do hedonista engagé Ernest Hemingway, quando Paulo Castro, pelas 13h00, lhe ligou. Gozando a companhia do engenheiro e empresário da construção civil Carlos Santos Silva, seu comparsa de longa data, e de um dos advogados deste, Gonçalo Ferreira, com os quais acertara um fugaz encontro parisiense, Sócrates não atendeu.

Ali mesmo junto ao Quartier Latin, na margem esquerda do Sena, fazia com Santos Silva, amigo há décadas na Covilhã, o ponto de situação da viagem. Entre o seu círculo de amizades, o empresário figurava, com toda a certeza, entre quem melhor o conhecia: do mais supérfluo que existia na sua personalidade ao minúsculo pormenor que definia o seu caráter. Era de uma fidelidade canina: apesar de estar a par dos seus segredos mais cabeludos, nunca se atreveria a contrariá-lo. Com ele mantinha uma relação de total subserviência. No fundo, viviam na dependência, quase viciosa, um do outro. Por vezes, Carlos detestava-o com violência, o que porém nunca deixava transparecer. Só na intimidade do lar, com a mulher (sem casamento no registo) e também sócia, Inês Pontes do Rosário, que para o amigo arranjara a alcunha de Fininho, Santos Silva se libertava do jugo do outro.”