Costa já não sorri

Uma das coisas que irritavam a direita era o permanente sorriso de António Costa.

Mesmo em momentos supostamente difíceis, Costa sorria – levando os adversários a interrogar-se: «Este homem sorri de quê?».

Era um sorriso enigmático, qual Gioconda, que poderia ser de escárnio ou de gozo.

Ora, esse sorriso apagou-se.

E esse é talvez o sinal mais importante de que algo mudou na política portuguesa.

Para esta mudança de atitude do primeiro-ministro apontam-se várias razões.

É certo que uma maldição parece ter-se abatido sobre o país, como se os deuses estivessem contra nós.

Foram os terríveis incêndios de junho e outubro, foi a legionela, foi a seca extrema.

E, pelo meio, o nunca esclarecido roubo de armas em Tancos.

Foi muita coisa.

E, no plano político, o panorama também mudou.

As eleições autárquicas de 5 de outubro tiveram duas consequências principais: a mudança de comportamento do PCP e a saída de cena de Passos Coelho.

Coelho era um abcesso de fixação da esquerda, que contribuía para ela se manter unida e para António Costa passar ‘despercebido’.

Ao afastar-se, Costa ficou mais exposto.

Por outro lado, a perda de câmaras emblemáticas por parte do PCP levou um animal que já parecia domesticado a mostrar-se de novo feroz. 

Os comunistas perceberam que ao apoiarem o PS, que era o seu grande adversário histórico, estavam a enterrar-se.

É preciso lembrar que a principal luta de Cunhal sempre foi contra Soares.

Assim, voltaram as reivindicações, as manifestações e as greves.

É muito curioso ver a irritação de certa esquerda próxima do BE perante este movimento reivindicativo, dizendo que no tempo de Passos Coelho estava tudo calmo e agora os sindicatos protestam sem razão.

Desde quando a extrema-esquerda se insurge contra a agitação laboral?

E será que no tempo de Coelho estava tudo calmo e tranquilo?

A memória é seletiva…

No tempo da troika havia manifestações todos os dias, houve greves gerais, a própria Polícia esteve à beira de invadir o Parlamento, criou-se um ambiente pré-insurrecional – com alguns líderes (entre os quais Mário Soares) a apelarem à rebelião civil.

Mas é evidente que a mudança de posição do PCP foi decisiva para a alteração do clima político.

E já não vai mudar, porque Arménio Carlos não deixará; aliás, não se sabe ao certo quem pontifica hoje na área comunista – se Jerónimo de Sousa, se Arménio Carlos.

Até porque este terá legítimas ambições de vir a liderar o PCP.

A agitação nas empresas e nas ruas não irá, pois, acalmar.

E foi sobretudo isso que ditou o fim do sorriso de António Costa.

Enquanto a oposição foi política, enquanto se resumiu ao debate partidário e às críticas do PSD e do CDS, António Costa manteve-se sorridente; mas quando passou do Parlamento e dos salões para a rua, o caso mudou de figura.

E isto mostra que a grande força de oposição em Portugal continua a ser o PCP e a sua extensão sindical, a CGTP.

Veja-se, a propósito, o que está a suceder na Autoeuropa.

A partir do momento em que a rua começou a agitar-se, António Costa passou a dar mostras de um inesperado desconforto.

Foram as infelicíssimas declarações após os incêndios de outubro.

Foram as hesitações quanto à saída de Constança Urbano de Sousa e a dificuldade em proceder a uma remodelação que relançasse o Governo, limitando-se a fazer uns remendos.

Foi o precipitado comunicado sobre o Panteão, que acabou por se virar contra ele próprio.

Foi a rendição aos professores, criando um problema bicudo em toda a Função Pública, que agora quer as mesmas regalias.

Foi a ideia de mudar o Infarmed para o Porto, para compensar a derrota na candidatura à Agência Europeia do Medicamento.

António Costa, que parecia de uma cepa diferente da de Guterres, começou a parecer-se com ele.

Como Guterres, Costa cede a quem berra mais alto. 

Como Guterres, Costa começa por resistir, por dizer que não há condições para satisfazer as reivindicações, mas acaba por ceder.

Como Guterres, muda de posição na discussão do Orçamento. 

Aliás, a própria candidatura do Porto à Agência Europeia já fora uma cedência – pois inicialmente a cidade escolhida era Lisboa, só tendo passado para a capital do Norte por pressão de Rui Moreira.

O primeiro-ministro parece desnorteado.

Para isso, também pode ter contribuído a mudança de atitude Marcelo, que a partir de junho se demarcou, deixando de o levar ao colo.

O facto é que, se Costa dava antes a ideia de liderar os acontecimentos, agora parece andar sempre a correr atrás dos acontecimentos.

Se parecia antes ter o controle das situações, agora anda a reboque das reivindicações, das pressões, das ameaças.

Antes, António Costa sorria porque achava que a última palavra seria a dele.

Hoje já não sorri porque percebeu que,  depois de ele falar, há sempre algo que acontece e que o obriga a mudar de opinião.