Alfredo Barroso. “O Estado social foi desmantelado pela própria social-democracia”

É otimista em relação à geringonça, embora sublinhe que não há saída para a crise sem reestruturação da dívida

A conversa foi tida há uns tempos, coincidindo com a saída do último livro escrito por Alfredo Barroso, “Corações de Pedra”, em que foi buscar o título a uma frase de John Maynard Keynes, num artigo em que o maior economista do séc. xx explicava as consequências perversas do acordo firmado na Conferência de Versalhes, de que resultaram condições impossíveis de cumprir que conduziram o mundo ao precipício aterrador da II Guerra Mundial. Um paralelo lúcido com uma sociedade atual que condena os pobres à morte ou à violência.

Estamos num momento de grande esperança no mundo?

Eu sei que está a ironizar. Mas até tenho uma boa expetativa. Percebo que está a falar das últimas intervenções de Trump. Mas eu estava a falar sobre a evolução do país. Sei que é uma solução com muitos problemas, mas é muito boa. Em relação aos desequilíbrios internacionais, é impressionante como coincidem, no mesmo tempo, dois tipos como o atual líder da Coreia do Norte, Kim Jong-un, e Donald Trump, para não falar do louco das Filipinas e do líder turco, Erdogan, que é um tipo perigosíssimo. É impressionante como essa gente chega ao poder, na sua maioria, pelas urnas. Mas não são casos únicos na história, como a gente sabe: como o Hitler, também foi assim. 

Não absolvendo a dinastia coreana, que começa com um capitão do Exército Vermelho, Kim Il-sung, não acha que a história do atual conflito está mal contada? Até porque aquilo que se tem verificado é que os países que não têm armas de destruição maciça acabam invadidos. 

Isso ficou patente quando os EUA, em aliança com o Tony Blair, decidiram invadir o Iraque. Estou convencido que eles mentiram deliberadamente sobre as alegadas armas de destruição maciça. 

O seu livro parte de uma constatação: o desenvolvimento de um capitalismo que se tornou desigual, destrutivo, mas sem ter uma correspondente oposição política e social organizada.

Pelo menos ao nível europeu, isso não existe. Há uma experiência falhada, que é dos gregos – na qual eu, ingenuamente, depositei uma imensa confiança. Cheguei a participar num comício do Bloco de Esquerda de apoio ao Syriza e fui convidado para escrever num jornal de apoio a essa experiência grega. O confronto foi de tal modo brutal, porque o Schäuble [ministro das Finanças alemão nessa altura] viu nessa experiência uma ameaça tão grande às suas ideias autoritárias e ordoliberais, que foi implacável no comando que detinha para dar cabo daquela experiência.

Também é verdade que os protagonistas não estiveram à altura do que prometiam.

Era o que eu ia dizer. Acabaram por ceder. Eles não tinham preparado a alternativa, convencidos de que a Europa e a Alemanha acabariam por ceder, por uma questão de racionalidade. É manifesto que eles não tinham plano B para isso, nomeadamente não tinham nenhum plano para uma eventual saída do euro e da própria União Europeia. E o ministro das Finanças, Yanis Varoufakis, que é um tipo muito inteligente, foi ingénuo, pensando que podia fazer frente ao Schäuble – o que manifestamente não era possível. 

Penso que o erro deles foi mais fundo: pensaram que bastava argumentar do ponto de vista dos ganhos para a economia grega e europeia para ganhar uma discussão ideológica.

Há várias racionalidades económicas conforme as doutrinas. E a chamada racionalidade das teorias liberais é que só podem vencer os que estão no poder e controlam as finanças, os acionistas e plutocratas, e não os trabalhadores. O neoliberalismo significa, entre muitas outras coisas, o desequilíbrio da balança entre o capital e o trabalho. A partir do momento em que o capital tem de remunerar a curto prazo os acionistas, visto que eles são os verdadeiros produtores do lucro e que é necessário sacrificar a parte do trabalho…

Verdadeiros, aqui, tem aspas?

Claro. Eu às vezes esqueço-me de colocar as aspas. (risos)

Aquilo que lhe estava a colocar sobre a ausência de uma alternativa é que, na Alemanha…

… o Estado social foi desmantelado pela própria social-democracia. É real essa perda de alternativas quando quem tinha de as protagonizar passa a executor das políticas dos outros e cria uma série de pacotes de cortes sociais. 

Acha que é possível criar uma alternativa a esse capitalismo financeirizado?

Acho que neste momento não existe força bastante para isso – apesar de haver indícios que alguma coisa está a mudar. Em Espanha temos o Podemos; em França, não sei se reparou, hoje, o político mais popular é Jean-Luc Mélenchon. Admito que, a médio prazo, as chamadas forças de esquerda possam acolher o apoio da maioria da população. Nós sabemos que há muito conformismo nas sociedades contemporâneas e há muitas maneiras de distrair o povo, desde o pão e circo de antanho. Aliás, no meu livro “Corações de Pedra, a Maldição Neoliberal”, refiro-me a isso e ao papel da comunicação social. Agora há sinais no sentido contrário, como aqui em Portugal. Não digo que estou totalmente satisfeito com a experiência governativa, mas estou bastante mais satisfeito do que se ela não tivesse existido. Não sei até que ponto o conflito entre o PCP e o BE poderá gerar fricções que ponham em causa a governação. Acho que o PC tem um certo receio da progressão do Bloco de Esquerda. 

Não pensa que é mais um problema externo que interno? O limite da progressão desta governação não está na União Europeia?

É verdade. O PS tem receio de avançar num aspeto essencial que é – não digo a saída do euro, embora eu seja favorável a isso – a exigência de uma reestruturação total da dívida, porque é impossível qualquer plano de desenvolvimento em Portugal dado o que pagamos só de juros no serviço da dívida. É importante dizer que a dívida é um elemento essencial na imposição das políticas neoliberais.

Você é muito claro no seu livro quando aponta a contínua criação de dívida como um mecanismo de criação de poder e de subserviência.

Sim. E, sobre isso, o PS ainda não encontrou um caminho e uma resposta. Fiquei muito impressionado com a entrevista de um dos responsáveis da troika no “Expresso”, jornal que é hoje a grande barricada do neoliberalismo e contra os governos de esquerda – basta ler os editoriais do responsável por essa área desse semanário.

Como se coloca do ponto de vista ideológico: acha que é possível haver um capitalismo bom com democracia ou esta é a melhor sociedade possível, como nos garantia o Doutor Pangloss?

Não acho que possa haver um capitalismo bom. Mas acho que os malefícios do capitalismo foram de certo modo contidos, na sua selvajaria intrínseca, depois da guerra, com a difusão do Estado social.

Isso não pressupunha a existência de uma ameaça soviética?

A ameaça soviética foi ótima porque obrigou as democracias europeias a interessarem-se pelos mais pobres e a fazerem políticas redistributivas. Mas, isso, não acho mal, oxalá houvesse desafios desse tipo que fossem continuando a fazer pressão para que se desenvolvesse a democracia. Agora, o Estado social começa a claudicar quando aparecem as crises nos anos 70 [choque petrolífero 1973 e 1979 e a chamada crise da estagflação (inflação com estagnação)]. Foi com Reagan e sobretudo com Thatcher que este ataque ao Estado social começa a ser desenhado. No entanto, para mim, a fase mais perversa desse combate é protagonizada pelos dirigentes sociais-democratas Tony Blair (Partido Trabalhista) e Gerhard Schröder (SPD), que são, no fundo, gente que incorpora os valores neoliberais. Cheguei a uma idade em que gostaria de não ser completamente pessimista. Acho até que o meu livro não é um livro pessimista porque, apesar de tudo, apresento soluções, que não são as minhas mas a síntese de muitas leituras que fiz, sobre a necessidade de transformar a União Europeia (UE). Como se transforma a UE com o domínio dos governos conservadores?

Mas é possível transformar a UE ou é só possível voltar ao espaço de decisão nacional?

Acho que a conquista da soberania é essencial, sobretudo recuperar soberania popular, partindo da consciência de que já não vivemos em democracia, no sentido mais intrínseco e genuíno.

Chegámos a viver? 

Você não acredita na democracia?

Para mim, democracia passa, entre outras coisas, por “uma pessoa, um voto” para decidir, mas entretanto há o capital por ações, que tem o maior poder de decisão e que é de quem tem mais ações….

Desse ponto de vista, estou de acordo consigo. O capital por ações transfigurou completamente a democracia. Até pessoas que são moderadas, caso de um autor que eu li antes de escrever este livro, o Pierre Rosanvallon, que tendo sido muito à esquerda se tornou moderado, diz no seu livro “O Bom Governo”: “Os nossos regimes podem continuar a dizer que são democráticos, mas a verdade é que já não somos governados democraticamente. É este o grande ato que alimenta o desencanto e a angústia contemporânea.” 

Aquilo que lhe coloco é que não é inerente ao próprio desenvolvimento do capitalismo ser um capitalismo hiperfinanceiro e especulativo, como é agora? Se é possível regressar a um capitalismo “produtivo” e “regulamentado”?

Estou de acordo consigo. A tendência do capitalista seria essa, já o Thorstein Veblen o tinha detetado, num grande livro, em 1902, que era “A Teoria da Classe Ociosa”. Ele prevê, muito antes de a financeirização se sobrepor à industrialização, que isso ia acontecer. Afirmava que ia tornar-se dominante uma nova classe, que seria a classe ociosa, que sem trabalhar e a dormir ia ganhar e enriquecer através da especulação financeira. O que eu acho é que, para já, o que seria muito importante é que se voltasse a uma séria regulamentação estatal. Não creio que seja possível e realista sonhar com a destruição do capitalismo. Íamos lá colocar o quê? Acredito que seja possível domar o capitalismo e construir sociedades que, a pouco e pouco, se aproximem mais de um ideal de socialismo democrático e menos de um capitalismo completamente selvagem, defendido por uma espécie de guarda pretoriana. Os governos de direita chegam ao poder para proteger exclusivamente o capital. 

Você diz no livro que mesmo os governos de direita não sufragam com clareza aquilo que vão fazer, não colocam no seu programa eleitoral as suas reais intensões e a política que vão levar a cabo. Ninguém é favorável a que lhes cortem os direitos sociais e os salários. Mas, no entanto, eles são na UE quase sempre os vencedores das eleições. Como explica esse facto?

Ganham porque alimentam o medo e o receio de instabilidade intrínseco. Há uma espécie de conservadorismo e de receio de grande parte dos eleitores europeus. Nas sociedades contemporâneas, um dos aspetos fundamentais, que devia ser mais sublinhado, foi o ataque à classe média, de que resultou uma enorme proletarização de grande parte desses setores. Deixou de haver um certo equilíbrio que ela acabava por protagonizar. Quando se fala do crescente abismo entre ricos e pobres, isso está muito ligado a esse fenómeno de pauperização da classe média.

Há um interessante autor inglês, Owen Jones, que é cronista no “Guardian”, que tem um livro que propõe uma explicação contraditória com essa, no seu “Chavs: The Demonization of the Working Class”, em que ele defende que há é um ataque às classes populares e que nisso se encontra uma certa falsa apologia das classes médias, e que todos, se quisessem, podiam ter a vida da classe média. 

A perspetiva que devemos ter é que se trata de uma luta de classes: a estratificação entre alta burguesia, plutocracia, classes médias e classes baixas é muito perigosa. É uma espécie de aceitação da inevitabilidade dessa estratificação. Eu acho que se deve aproveitar os ataques brutais que a direita fez a muitos setores sociais das chamadas classes médias para tentar atraí-las para a contestação desta situação. Há uma altura muito curiosa – em que você está até envolvido até aos cabelos -, na espantosa manifestação de 15 de setembro de 2012. Eu nunca imaginei que pudesse haver uma manifestação ainda maior ou tão grande como o primeiro Primeiro de Maio de 1974, e viu–se a classe média, os pobres e os precários em peso. A questão é como se consegue tornar esses momentos em força mais durável. 

O problema aqui é, no fundo, a construção de uma alternativa política. A classe média pode ser pauperizada, os pobres podem ser a maioria da sociedade, mas não basta uma maioria estatística.

Justamente. É a consciência política desta situação e a capacidade de a transformar em alternativa que hoje não existe. As forças políticas dominantes estão todas orientadas no mesmo sentido e as dominadas estão sem representação ou com um peso muito diminuto. É por isso que eu acho importante que o Bloco de Esquerda e o PCP se tenham entendido com o PS para que a direita saísse do poder e tenham aceitado uma coisa pela qual eu sempre me bati: não é uma coligação governamental, mas um acordo para conseguir reverter alguns dos aspetos mais gravosos da política de direita.

Acredita que isso também vai mudar o PS? Quando o PS se vir com uma maioria absoluta vai ao seu caminho habitual ou vai continuar a querer governar com a sua esquerda?

Essa pergunta é boa. Foi o meu pessimismo em relação ao PS que me levou a sair em 2015. Não sei de que maneira isto não pode vir a influenciar uma parte mais jovem do partido. 

Está a falar de pessoas como o Pedro Nuno Santos, e não como o Sérgio Sousa Pinto?

Estou a falar de muita gente, mas obviamente que não do Sérgio Sousa Pinto – pessoa superiormente inteligente, mas não percebi a posição que ele tomou. Acho que nunca refletiu sobre experiências anteriores, como quando François Mitterrand envolveu os comunistas no seu governo. Mas há outros tipos que também não perceberam a situação portuguesa, como o Francisco Assis ou um outro, que escreve sempre muito zangado no i, o António Galamba. A esses todos é necessário fazer-lhes uma pergunta fatal: o que pretendiam eles em alternativa? Viabilizar um governo do Passos Coelho? 

Não acha que isso tem que ver com o facto de, do ponto de vista histórico, uma das matrizes do PS foi o seu alinhamento no PREC contra o PCP, e isso deixou marcas?

Na altura houve, de facto, uma colaboração com setores de direita e anticomunistas. Mas eu vejo esses tempos com otimismo: a contradição entre o PS e o PCP e os setores de extrema-esquerda acabou por gerar uma democracia que integrasse também o PC e a extrema-esquerda. Posso estar a rever a História, mas estou convencido disso. A declaração que faz Melo Antunes no 25 de Novembro, quando afirma que o PCP faz parte do regime democrático que nós queremos implantar, é um ato fundador da nossa democracia muitíssimo importante e tem o apoio do Partido Socialista. Mas não tem o acordo de grande parte da direita que está implantada no próprio exército.