Paula Brito e Costa. “Já enviei um email a um ministro com o significado de democracia”

Entrevista publicada originalmente em 31/08/2011 no jornal i

É conhecida como presidente da Associação Nacional de Doenças Mentais e Raras a que deu o nome de Raríssimas. Mas foi preciso desbravar o passado para descobrir a origem da descontracção com que chega ao local da entrevista e começa a brincar com o fotógrafo: durante nove anos foi manequim profissional. Criou a Raríssimas por sugestão de um  médico depois de inúmeras viagens ao estrangeiro com o filho Marco, que nasceu com Cornelia de Lange. Ainda hoje quando lhe perguntam quantos filhos tem responde que tem dois, mas só um é que está com ela. Critica as políticas de saúde centradas na poupança e denuncia que há tratamentos de portadores de doenças raras que são bloqueados por ser caros. Nem sequer aceita esse adjectivo: para quem anda há 17 anos com doenças raras na cabeça, a vida não tem preço. O email enviado ao ministro não teve resposta mas nunca acreditou que tivesse. 

Quando o familiar de uma criança com uma doença rara vai ter consigo, o que lhe diz?

Quando é o pai ou a mãe, geralmente não diz, chora. Quando são os próprios doentes, já adultos, a conversa  é mais fácil. Até porque estamos a falar de uma grande variedade de doenças raras e muitas não afectam o foro intelectual.

Há doenças raras mais difíceis que outras?

Todas são difíceis. Umas são difíceis de diagnosticar, algumas são de difícil convivência social e outras são difíceis pela dor directa que causam aos doentes.

Estes doentes são muitas vezes mal diagnosticados?

Já foram mais. O que encontramos muitas vezes são doentes sem diagnóstico, mas atenção, nem sempre é possível classificar uma doença rara. Quando comecei a trabalhar nisto, há 17 anos, encontrava mais gente com diagnósticos mal feitos. Pior, encontrava pessoas que já tinham passado por três médicos e vinham com três diagnósticos diferentes.

Há pessoas que procuram a Raríssimas para conhecer um diagnóstico?

Durante muitos anos era a Paula [fala de si na terceira pessoa] que respondia às famílias e que, pela sua experiência, as encaminhava. Depois a Raríssimas sentiu necessidade de profissionalizar. Hoje temos um serviço de excelência, um case study na Europa, que é a nossa Linha Rara.

Como é que a linha funciona? Com voluntários?

Na Raríssimas não temos voluntários, só profissionais. Somos 24 técnicos: assistentes sociais, gente da comunicação, enfermeiros, psicólogos, juristas. Era muito difícil dar resposta em tempo útil na Linha Rara, por exemplo, quando se tem um voluntário que no dia a seguir não pode vir. Não é isso que queremos para os nossos doentes. Quando alguém liga naquela hora espera uma resposta ou pelo menos um aconselhamento naquela hora. 

É possível ter uma doença rara e passar a vida toda sem saber?

Uma das minhas grandes amigas queixava-se de uma retinose pigmentar e dizia que a mãe e a irmã também tinham. Mandei-a para uma consulta de genética nessa área. E aos 38 anos ela descobriu que tinha síndrome de Marfan e que a retinose pigmentar era só uma consequência da doença.

Quando decidiu criar a Raríssimas?

Fui quase que atirada aos lobos. Um amigo meu, o Dr. Luís Nunes, começou a viajar comigo e com o Marco para trazer know how de fora. E um dia disse-lhe: “Luís, tenho tanta informação e é uma pena, há tanta gente que precisa do que eu sei. E se criássemos uma associação de Cornelia de Lange?” E ele: “Isso é que era bom! Se quiseres criar uma associação, vais criar uma de doenças raras.” E eu: “Vou lá agora, não percebo nada de doenças raras.” E ele: “Nem precisas, não és médica. É uma atitude egoísta estares a apenas a pensar nas pessoas que têm Cornelia de Lange. Não contes comigo se for só para isso.” Fui-me embora chateada com ele. No dia seguinte disse-lhe: “Se entrares no barco, vamos lá embora.”

Lembra-se da primeira pessoa que a procurou?

Leu uma reportagem e não sei como descobriu a minha morada. Quando cheguei a casa, às onze da noite, estava sentada nas escadas à minha espera. Era uma mãe de um menino com a mesma doença que o Marco. Ver naquele dia, naquela escada, aquela mãe com aquele filho ao colo, fez-me perceber quão pobre era o meu país a nível de colo para estas pessoas. Acho que foi nesse dia que descobri que a minha ideia não era um mero capricho.

O Marco começa a ir para os Estados Unidos com que idade?

Aos seis. Ia e voltava, noutras alturas ficava uns meses. Também íamos muitas vezes a Itália. Sabe que deixar um país para ir pedir colo a outro é humilhante.

Foi maltratada?

Lá fora? Nunca. Humilhante no sentido em que não tenho nada para lhes dar.  Os Estados Unidos, não sendo eu cidadã americana, abriram-me a porta e deram tudo ao Marco. E o Estado português não pagava nada ao Estado americano.

Com que idade o Marco conheceu o diagnóstico?

À nascença. Mas o problema do Marco não foi o diagnóstico, foi não haver um relatório clínico que explicasse tudo o que estava associado à doença. Era a Paula quem lia e se informava aqui e ali e depois dizia ao médico: olhe, importa-se de fazer uma endoscopia?

O Marco era o seu primeiro filho.  Recebeu a notícia mal ele nasceu?

Costuma-se dizer que não há boas maneiras de dar más notícias. O Marco era um menino muito esperado. Com 21 anos o que é que queremos? Filhos louros, de olhos azuis, Bernardos, Francisquinhos, esses filhos de quem toda a gente está à espera. Eu não era diferente.

Recorda-se das palavras exactas,
da maneira como ouviu a notícia na altura?

Recordo, mas se perguntar qual a leitura que faço hoje, não tenho muito para lhe dizer. O seu menino tem umas mãos pequeninas, tem microcefalia, tem cabelo que se farta, tem não sei o quê. E às tantas perguntei: ele não tem mais defeitos? Se ele tem 1,900 kg, o que é que a senhora quer que ele calce? O 43? Se me perguntar: via que era diferente? Via, claro que via, mas não me importava, queria era pegar na minha cria e mimá-la.

Começou logo à procura de soluções?

O que queria mesmo era curtir a minha cria. Só senti essa necessidade quando o Marco começou a ficar permanentemente doente. Como qualquer mãe, senti que tinha de salvar a vida do meu filho.

Quem lhe indicou os EUA como um bom sítio para tratar o Marco?

Fiz um ultimato ao hospital. Obrigava a médica a descobrir onde é que era possível tratar o Marco. Agora vamos trocar de lugar. Sabe tratar o Marco? Não? Então vai descobrir quem pode.

Conseguiu apoios?

Algumas vezes sim, mas era muito caro, ainda por cima na altura o dólar estava altíssimo. Tive de deixar de trabalhar e o meu marido começou a trabalhar à noite – ganhava muito bem, felizmente.

O que fazia antes de o Marco nascer?

Dava aulas de ginástica, tinha sido ginasta de alta competição. Gravidíssima do Marco continuava a dar as minhas aulas. Depois resolvi voltar a estudar e optei pela Filosofia. Quando o Marco nasceu percebi que o que tinha ido beber chegava: não queria a Filosofia para dar aulas e nunca acabei a licenciatura.

Ouvi dizer que também foi manequim.

Fui manequim profissional durante nove anos. Tinha o César [segundo filho] três meses, eu inchada por todo o lado, e uma marca ainda me foi buscar.

Como é que isto aconteceu?

Foi mais ao menos como brincava ali há pouco com o fotógrafo: uma pessoa quando é gira é gira. [risos] Sou do signo Balança, portanto gosto muito de tudo o que é belo. E tinha amigas profissionais que andavam sempre de volta de mim. Quando descobri o que elas ganhavam… Bem, nunca ganhei tanto dinheiro na minha vida. Casei e mobilei toda a casa sozinha. O meu marido ganhava 25 contos por mês, eu ganhava 16 contos por dia.

Quando estava a ser fotografada deu a entender que tinha uma consultora de imagem.

Sim, sou eu própria. Se não tivesse sido manequim, se não soubesse adequar a roupa à minha forma, à minha idade, talvez precisasse. Nas mulheres há sempre um quê de timidez. Ter sido manequim ajudou-me a ter mais à-vontade até para conversar com um ministro.

Mas foi alguém que a descobriu e a levou para o mundo da moda?

Tinha ido fazer uma formação, sem o meu pai saber, claro, e depois a minha amiga e manequim Ana Monteiro ia insistindo e começou a recusar certos trabalhos só para eu ficar com eles. Do género: “Paula, aconteceu-me uma desgraça, não vou poder ir hoje nem amanhã.”

Entrou para ajudar uma amiga mas depois acabou por gostar, foi isso?

Quem não gosta? Tinha trabalhado que me fartei no tal curso intensivo de manequim, tinha tirado a melhor nota entre 60 alunos, e tinha prometido que pagava o curso à minha mãe. Na altura já custou 300 contos e ela tinha de justificar ao meu pai para onde tinha ido o dinheiro.

O seu pai não concordava?

Nunca achou grande piada. Aliás, ainda hoje não comenta o assunto.

O que é que faziam os seus pais?

O meu pai era fuzileiro, a minha mãe sempre foi doméstica. Eram do Alentejo. Aliás, sou saloia, porque vivo em Caneças, e o meu esqueleto é todo alentejano. Tenho ainda uma costelazita espanhola, da parte do meu avô paterno.

Sendo filha de militar, teve uma educação muito rígida?

Até tive de comer com ovos debaixo dos braços.

Literalmente?

Sim, para não pôr os cotovelos em cima da mesa. E ai se rebentasse algum. O meu pai nunca me bateu, mas quando era criança acho que houve ali uma altura em que posso dizer que não gostava muito dele.

Há pouco falou da alta competição. Que desportos praticou?

Quando começava a ficar muito boa numa coisa tinha de mudar de modalidade. Fiz ginástica, natação e depois chateei-me e resolvi ir para as artes marciais. Aí conheci o meu marido, que era o meu mestre.

Que idade tinha na altura?

Tinha 16. Inicialmente ele não gostava nada de mim. Eu já era manequim e ele achava que era uma empinada – curiosamente, ainda há pessoas que acham isso hoje. Saía das colecções às sete e meia e ia treinar até às dez, às vezes quase nem tinha tempo para me desmaquilhar. Durante um ano e tal raramente falámos. No dia em que morreu o Joaquim Agostinho, como eu era a coqueluche do Sporting na modalidade, convidaram-me para ir velar o corpo. Os velórios acabavam às tantas da manhã, então o meu mestre teve de me ir pôr a casa. No dia seguinte fomos ao funeral, primeiro que chegasse a Torres Vedras demorou umas nove horas, porque era um mar de gente, e ele aí começou a perceber que eu não era assim tão empinada, até lavava a cara e não usava sempre aquela maquilhagem que assustava as pessoas na rua.

Como é que o seu pai reagiu a isso?

Com todos os constrangimentos que isso possa ter para um fuzileiro, explicar que a filha namora com um homem doze anos mais velho, divorciado na altura e com dois filhos… não foi fácil. Hoje acho que encontrei a minha alma gémea. Costumo dizer que há duas pessoas que me conhecem bem: Deus e o meu marido.

Como é que contou ao seu pai?

Nos primeiros tempos escondemos. Depois o que o meu pai fez foi: tudo bem, esse senhor entra em minha casa quando me trouxer a sua certidão de nascimento – onde vinha na altura o divórcio. E no dia em que ele foi lá a casa a minha mãe abriu a porta, o meu pai estava na cozinha, eu entro e ele entra atrás de mim. E o meu pai, um homem com quase dois metros de altura, diz: “Importas-te de me dizer o que é que estás aqui a fazer?” Eu e a minha mãe ficámos em pânico, mas depois seguiu–se um abraço do tamanho do mundo e nós não entendíamos nada. Até que descobrimos que o meu marido tinha sido motorista pessoal do meu pai. Enquanto o meu pai estava na Marinha, o meu marido era a pessoa que me levava à praia todos os dias quando o meu pai estava na Nato. Fui criada nos quartéis, ao lado dos homens, mas ao fim-de-semana ia com a minha mãe para a praia da Torre. Filha de fuzileiro, claro, não ia sozinha. Imagine o que é descobrir que a pessoa que me levava era o meu namorado, agora meu marido! Ainda hoje ele não chama sogro ao meu pai, chama-lhe chefe.

Dois anos e meio depois de o Marco nascer teve o César. Como era a relação dele com o irmão?

O que pode ser considerado uma coisa sublime? Ele é que ministrava a morfina,  dava-lhe comida, substituía o pai quando ele não estava. Foi pai muito cedo.

Sabia até que idade o Marco ia viver?

A certeza que tive quando o Marco nasceu é que ele iria primeiro que eu. Nenhuma família está preparada para isso. Mas sei hoje que a minha família viveu com o Marco o que muita gente não viveu com filhos sem problemas.

Já lhe aconteceu chegarem até si pais de crianças com doenças raras que desprezassem os filhos?

Desprezar é uma palavra muito forte… felizmente esses são raríssimos.

Um dos grandes projectos da Raríssimas, a Casa dos Marcos, curiosamente nasceu de uma sugestão do Marco.

O Marco chegou aos 16 anos e não tinha escola para onde ir. Não havia respostas sociais para meninos como ele. Ou iam para Cercis – que eu respeito, mas foram criadas para satisfazer necessidades de há 30 anos – ou não tinham escola. E um dia ele pergunta-me: “Mãe, não tenho uma escola?” Tens aquela, se não quiseres não tens. E ele responde chateado: “Ai não tenho uma escola, então tens de me fazer uma escola!”

A Casa dos Marcos vai conseguir dar resposta a quantas pessoas?

Estima-se que possa atender cerca de 7 mil por ano. O que salva Portugal é ter gente muito boa a fazer muita coisa boa pelo  país. Tenho pena que os políticos, na sua grande maioria, não sejam capazes de ver isso e minimizem os problemas. A política é, ou devia ser, o exercício do dever público. É pelo menos desse princípio que parto quando começo um relacionamento com um político.

Imagina-se num cargo político?

Não. Não sei mentir, ou minto mal, ajo com a minha cabeça e não me deixo influenciar por opiniões externas, portanto jamais conseguiria. Por que razão então é que a maior parte dos políticos olha para os representantes das associações como uma ameaça, como alguém que só está ali para fazer braço-de-ferro? Não, vivemos em democracia! Uma vez enviei um email a um ministro com o significado de democracia do dicionário e no fim disse-lhe que era tudo aquilo que ele não fazia.

Enviou a um ministro da Saúde?

A um ministro, não vou dizer qual.

Teve resposta?

Não, mas também não estava à espera. O trabalho que tenho feito até aqui tem sido um trabalho de mudança de mentalidades e acho, continuo a acreditar, que vou conseguir mudá-las.

Tratar estes doentes custa muito dinheiro?

As patologias com medicamentos órfãos são as mais problemáticas. Mas o que é muito dinheiro? Não temos um Serviço Nacional de Saúde? Não temos uma Constituição que é muito específica nos direitos de cada um à saúde? A vida humana não tem preço: é isso que os médicos estudam nas universidades mas esquecem quando saem de lá. Estes doentes são da responsabilidade do Estado, porque é que temos de andar a pedinchar? Nunca me digam que um medicamento órfão é demasiado caro. É uma mais-valia para os doentes? Então não interessa quanto custa. Infelizmente é só nessa lógica da poupança que têm pensado os governos e é assim que se gerem hospitais e a coisa pública que é a saúde. Há coisas em que não é possível retirar mais nada, temos de dar, como já disse o Presidente da República no seu discurso. Se há desperdício na saúde? Claro que há, mas isso não é motivo para tirar direitos a estes doentes. Se há um tratamento, temos é de segui-lo.

Há tratamentos que são bloqueados por ser demasiado caros?

Pergunte ao senhor ministro.

Está a dizer-me que sim. Perante isso qual é a solução?

Tem de haver formas de lutar. Estamos num país democrático e temos um serviço nacional de saúde, cuja obrigação, recordo, é cuidar dos doentes.

Ser uma mulher bonita trouxe-lhe vantagens?

Não, a inteligência é que traz vantagens. Temos muito boas mulheres na política que Deus não dotou assim de muita beleza e elas não são piores por isso.